Conhecimento sensível (felt knowledge) e vulnerabilidade corajosa (courageous vulnerability): um estudo sobre a memória involuntária no livro Em busca do tempo perdido através das filosofias de William James e Henry Bergson


Rosa Slegers[1]

 

INTRODUÇÃO

William James faz a seguinte observação em As variedades da experiência religiosa: “A Filosofia vive de palavras, mas a verdade e a realidade fluem em nossas vidas de maneiras que excedem a formulação verbal. No ato vivo da percepção há sempre algo que brilha e cintila, e que não vai ser retido, e para o qual a reflexão vem tarde demais” (JAMES, 1985, p. 457). Nesse artigo, vou usar insights das obras de William James e Henri Bergson para explorar o conceito de memória involuntária no livro Em busca do tempo perdido (A la recherche du temps perdu) de Proust. Embora a memória involuntária “[…] exceda a formulação verbal e não vá ser retida”, James e Bergson, juntos, oferecem modos de se abordar este fenômeno e mostrar sua relevância. Usarei os trabalhos desses dois filósofos para sublinhar a importância da memória involuntária por meio de uma descrição da atitude que eu vou chamar de vulnerabilidade corajosa e que, como vou argumentar, é exemplificada pela obra de Proust.

 

COBERTURAS (COUVERCLES)

O episódio de memória involuntária da recherche mais conhecido diz respeito ao modo como o narrador recorda uma lembrança de sua infância através do efeito do sabor de um pedaço de bolo (petite madeleine) mergulhado no chá. Como resultado do episódio da madeleine e de outras experiências semelhantes, o narrador da recherche chega à conclusão de que o passado está escondido em sensações físicas, tais como no sabor da petite madeleine embebida no chá, no som de uma colher batendo contra o prato, ou ainda na sensação de um guardanapo em contato com os lábios. Algumas sensações e objetos são como tampas ou capas, embaixo das quais o passado está encoberto. Depende do acaso (hasard) nos depararmos com essas tampas e, assim, ganhar a possibilidade de descobrir as memórias que estão sob elas. As sensações provocadas por esses objetos convidam o narrador a explorá-las; como se elas dissessem a ele: “Aproveite esse momento e tente resolver o enigma da alegria que eu lhe enviei” (PROUST, 1982, v. 3, p. 899)[2]. Nosso passado esquecido, “o tempo perdido”, só pode retornar quando nós reconhecemos os objetos que funcionam como couvercles. Num passeio com Madame de Villeparisis, o narrador é tomado pela visão de um conjunto de árvores enfileiradas que parecem a ele mais reais do que qualquer outra coisa à sua volta; Madame de Villeparisis, a cidade de Balbec, o passeio que eles estão fazendo, tudo de repente parece parte de uma obra literária, enquanto as árvores pertencem à realidade que o leitor encontra quando levanta os olhos da página do livro (PROUST, v. 2, A l’Ombre des Jeunes Filles en Fleur, p. 717). O narrador, no entanto, falha em compreender essa realidade que a visão das árvores o convidaram a explorar. As árvores pediram para ser tomadas por eles, para “trazê-los de volta à vida”. “Na sua simples e apaixonada gesticulação eu podia distinguir a angústia impotente de uma pessoa amada que perdeu o poder da fala, e que sente que ela nunca será capaz de nos dizer o que ela quer dizer e o que nós nunca iremos adivinhar” (PROUST, Remembrance, v. 1, p. 737)[3]. O chamado feito pelos objetos materiais aparece ao narrador como uma obrigação moral que ele tem com seu passado, como se este fosse um ser vivo que precisa ser libertado. A busca por memórias involuntárias não é moralmente neutra, mas, até certo ponto, obrigatória. Eu vou nomear a atitude necessária a essa busca como “vulnerabilidade corajosa”, uma noção a ser desenvolvida mais a frente.

O sabor da madeleine enche o narrador de alegria, mas também há episódios na recherche nos quais a memória involuntária é dolorosa. Vou considerar um desses episódios para demonstrar a existência de um modo de conhecimento que pode ser adquirido a partir da memória involuntária. O caso da petite madeleine evidenciou como, naquela experiência, o passado se torna novamente presente, na medida em que ele é conhecido desde dentro em vez de meramente descrito ou abordado de fora. Quero propor que o conhecimento adquirido através da memória involuntária pode ser chamado de conhecimento sensível e corresponde, como ficará claro adiante, ao que Bergson chama de intuição. Um trecho da recherche no qual tal conhecimento sensível é especialmente relevante pode ser encontrado em Sodoma e Gomorra quando, depois de sua chegada ao hotel em Balbec, o narrador realiza a simples ação de se curvar para desamarrar os sapatos. O movimento desencadeia a memória involuntária de sua avó que tinha estado lá há alguns anos para ajudá-lo a executar essa mesma ação quando ele estava doente. O narrador é tomado de tristeza e descreve o que está em seu íntimo:

Forte perturbação de todo o meu ser. Desde a primeira noite, como eu sofresse de uma violenta crise de fadiga cardíaca, tratando de vencer meu sofrimento, abaixei-me com prudência e bem devagar para tirar os sapatos. Porém mal tocara o primeiro botão de minha botina, meu peito inchou-se, repleto de uma presença desconhecida, divina, soluços me sacudiram, lágrimas me rolaram dos olhos. A criatura que vinha em meu socorro, me salvava da secura da alma, era aquela que, muitos anos antes, num momento de aflição e solitude idênticas, num momento em que eu não mais possuía de mim, havia entrado e me devolvera a mim mesmo, pois, era eu e mais do que eu (o continente que é mais que o conteúdo e como ela me trazia). Eu acabava de perceber, em minha memória, debruçado sobre minha fadiga, o rosto preocupado, terno e desapontado de minha avó, assim como estivera na primeira noite da chegada; o rosto de minha avó; daquela que eu me espantara e censurara de lamentar tão pouco e que dela só possuía o nome, mas de minha avó verdadeira, de quem, pela primeira vez desde os Champs-Élysées onde ela tivera o seu ataque, eu encontrara a realidade viva numa lembrança involuntária e completa. Essa realidade, não existe para nós enquanto não for recriada pelo nosso pensamento (todos os homens que participassem de uma gigantesca batalha seriam grandes poetas épicos). E assim, num desejo louco de me precipitar em seus braços, era apenas naquele instante (mais de um ano após o seu falecimento devido a esse anacronismo que muitas vezes impede o calendário dos fatos de coincidir com o dos sentimentos) que eu acabava de saber que estava morta (PROUST, V. II, Cities of the Plain, Part Two, p. 783).

O ato banal realizado pelo narrador de se curvar para retirar suas botas dispara nele a memória de sua avó o auxiliando nessa mesma atividade em outras circunstâncias. Essa memória é diferente de outras que o narrador teve desde sua morte, porque ela retoma “a realidade viva numa recordação completa e involuntária”. A diferença entre uma memória viva e real de sua avó e as memórias que recuperavam uma “avó que, de modo atônito e cheio de remorso, eu sentia tão pouca falta” ilustra a disparidade entre a memória involuntária e a voluntária. Memória voluntária que, de acordo com Samuel Beckett, em seu famoso ensaio Proust, “apresenta o passado de maneira monocromática” (BECKETT, 1951, p. 19). As memórias que lhe dizem respeito podem ser recuperadas, estudadas e analisadas à vontade; elas foram criadas para servir ao passado do qual se é consciente. Em contraste com esse caráter controlado e ordenado da memória voluntária, a memória involuntária é imprevisível e arrebatadora. “Ela escolhe o seu próprio tempo e lugar para realizar o seu milagre”(BECKETT, 1951, p. 20-21). O conhecimento que se pode obter de uma memória involuntária é um conhecimento sensível: pela primeira vez o narrador sente que sua avó está morta, mesmo que obviamente ele tenha tido conhecimento desse fato há algum tempo.

 

O ARTISTA BERGSONIANO

Vou lançar mão da estética de Bergson para explicar melhor o que quero dizer com conhecimento sensível e, especialmente, com a atitude de vulnerabilidade corajosa necessária para se obter esse tipo de conhecimento proporcionado pela memória involuntária. Em O Riso, Bergson faz a seguinte observação: “Entre nós e a natureza, ou melhor, entre nós e a nossa própria consciência um véu é interposto: um véu que é denso e opaco para o rebanho comum – fino, quase transparente para o artista e o poeta” (BERGSON, O Riso, p. 151). É função do artista perfurar os hábitos utilitaristas que nos separam da realidade entendida como um fluxo constante de coisas singularmente individuais. De acordo com Hulme, tal como ele aponta em seu livro Speculations, a criação artística pode ser descrita como um processo de descoberta e desprendimento (HULME, 1924, p. 149)[4]. “A arte não tem outro objetivo que não deixar de lado os símbolos utilitaristas… Deixar de lado tudo o que encobre e nos separa da realidade, a fim de nos colocar numa relação imediata com ela” (BERGSON, O Riso, p. 157)[5]. O artista descobre a realidade, escondida para as pessoas comuns, e a desprende das limitações postas pelo hábito e pela percepção utilitária cotidiana. Ao fazê-lo, não só inventa mas revela: mostra-nos o que estava lá o tempo todo, mas despercebido e invisível por conta do véu do hábito. Como Bergson explica no Ensaio sobre os dados imediatos da consciência: “O objetivo da arte é adormecer os poderes ativos, ou melhor, resistentes, da nossa personalidade e, assim, nos levar a um estado de perfeita capacidade de resposta” (BERGSON, 1971, p. 14). Ou, nas palavras de Hulme: “A cada expressão artística, o artista seleciona algo da realidade que, devido a um certo enrijecimento das nossas percepções, nos tornamos incapazes de ver por nós mesmos” (HULME, 1924, p. 156). Ele não é como o resto de nós de quem, segundo Bergson, “A vida exige que se ponha antolhos, não olhando nem para direita, esquerda ou atrás de nós, mas somente para frente na direção que temos que seguir” (BERGSON, The Creative Mind, p. 161)[6].

Tendo em mente essas condições sobre o artista bergsoniano, vou aplicar agora a noção de vulnerabilidade corajosa ao narrador da recherche. O conhecimento sensível mencionado acima só pode ser alcançado por aquele que está aberto à memória involuntária. Essa abertura é aquela do artista para quem o véu é transparente, podendo-se perfurar os hábitos utilitários do intelecto e das percepções. Em termos proustianos: o artista não se limita às memórias voluntárias, tem também a disposição necessária para se beneficiar da memória involuntária. Para tal abertura, é preciso ser corajosamente vulnerável, isto é, estar atento à memória involuntária e ter a coragem de buscá-la. O narrador da recherche procura a verdade por trás da dolorosa experiência disruptiva que está atravessando, porque é a única coisa que lhe resta de sua avó. Ele se agarra à dor porque ela é sua entrada para o passado, em oposição às memórias superficiais e voluntárias nas quais sua avó não é mais que uma estranha. Chamarei, portanto, de vulnerabilidade corajosa a disposição do narrador em perseguir a memória involuntária. Em vez de se afastar da dor, ele procura se aproximar dela. As memórias involuntárias nos chegam a todos, mas para adquirir conhecimento a partir delas é preciso permitir-se ser atingido com toda a força, em vez de tentar bloqueá-las. Todavia, além desse lado passivo da disposição requerida pela vulnerabilidade corajosa, há um lado ativo que implica coragem e foco. A memória principal é esquecida, torna-se desconhecida para o eu atual, e por isso ganha um caráter perturbador.

 

O HÁBITO E O SENTIMENTO DE RACIONALIDADE

Como ficou claro, Bergson afirma que o artista não é governado por hábitos utilitários como o resto de nós. Ou, para usar o termo que introduzi, o artista é corajosamente vulnerável. A conexão entre o hábito, a memória involuntária e sua qualidade disruptiva torna-se mais clara ao se observar alguns elementos do trabalho de William James. De acordo com James, a única filosofia que pode fazer justiça à experiência é o empirismo radical. Na experiência concreta, as coisas não são bem distinguidas. Usamos conceitos e teorias como atalhos (shortcuts) no fluxo contínuo da experiência e, na medida em que eles nos são úteis, parecem-nos “racionais”. Não há nada de errado com o uso de teorias e conceitos, conquanto, em vez de representação objetiva da realidade, eles sejam concebidos como ferramentas. O que diferencia o empirismo radical do empirismo tradicional é o reconhecimento de que “todos os cortes que fazemos [no fluxo da experiência] são produtos artificiais da faculdade de conceituação” (JAMES, [An Overview], p. 808)”. Nós não podemos evitar a necessidade de racionalizar e conceitualizar, porque nem sempre podemos “nos deixar levar pela corrente da experiência, pela espessura de sua areia e cascalho,… sem receber qualquer vislumbre que venha de cima” (JAMES, The Continuity of Experience, p. 292)[7]. Sem racionalizações, nós nos sentiríamos perdidos, soterrados pela multiplicidade caótica da realidade. Deixando-nos levar pela experiência, não podemos discernir os padrões que atam as experiências, e precisamos desses padrões para nos sentir à vontade. Esse sentimento de facilidade, a sensação de que a realidade “faz sentido” e a de que compreendemos suas relações internas é o que James denomina Sentimento de Realidade[8]. Nós experimentamos esse sentimento quando sentimos que as coisas não são caóticas, mas se encaixam e estão estruturadas para que possamos trabalhar com elas. A racionalidade pode ser reconhecida por marcas subjetivas: “uma forte sensação de facilidade, paz, repouso… A transição de um estado de inquietação (state of puzzle) e perplexidade para a compreensão racional é repleta de prazer e um vívido alívio” (JAMES, The Sentiment of Rationality, p. 317). Por outro lado, o sentimento de irracionalidade é caracterizado pela confusão e por um desejo de explicar ou esclarecer, mas também pela incapacidade de fazê-lo. Enquanto a nossa função mental está desimpedida e os nossos pensamentos podem fluir suavemente, desobstruídos de qualquer obstáculo, nós sentimos que o mundo é racional (JAMES, The Sentiment of Rationality, p. 324). Quando os pensamentos e as coisas comportam-se tal como o esperado, o sentimento de racionalidade mantém-se imperturbável.

O costume e a familiaridade desempenham um papel importante no que diz respeito à racionalidade. A novidade, no entanto, irrita, e pode facilmente se tornar um obstáculo para o fluxo de pensamento. Ela precisa ser incorporada e adaptada à realidade vigente. A memória involuntária é uma novidade, uma sensação que interrompe o fluxo fácil da consciência e desestabiliza o sentimento de racionalidade. É inesperada e ataca de surpresa; é oposta a tudo o que é habitual. Diremos do hábito que ele é útil e bastante necessário nas interações cotidianas, assim como o sentimento de racionalidade. Ele beneficia a comunidade porque proporciona estabilidade. “O hábito é este enorme pêndulo da sociedade, o seu agente conservador mais significativo” (JAMES, Habit, p. 16). A desvantagem do hábito reside no suposto, frequentemente inquestionável, de que tudo o que é experimentado em conformidade com ele e com a racionalidade é mais significativo do que o que não está de acordo. Em outras palavras, sempre se está tentado a valorizar o que estimula o sentimento de racionalidade como uma representação adequada da realidade, ao passo que as interrupções desse sentimento são desconsideradas como irracionais e, portanto, irreais. Os elementos irracionais tornam-se obstáculos a serem integrados ao fluxo de experiência para que não provoquem perturbação. O hábito promove o sentimento de racionalidade, mas, ao fazê-lo, abre pouco espaço para a novidade. A novidade muitas vezes será tida como irracional simplesmente porque não se encaixa nas circunstâncias existentes.

Vulnerabilidade corajosa e temperamento jamesiano

Como eu tenho mostrado, o hábito e o Sentimento de Racionalidade estão relacionados ao uso de conceitos, e Bergson concorda com James que os conceitos, ainda que úteis, devem ser considerados com cuidado. Bergson afirma que através da intuição ou, o que vem a dar no mesmo, através da simpatia, descobre-se que não há dois momentos iguais na vida. A vida interior não pode ser expressa através de conceitos porque, simplesmente, os conceitos são demasiado fáceis. Os conceitos “não exigem esforço de nossa parte” (JAMES, Habit, p. 28), porque eles simplesmente expressam o que diferentes objetos têm em comum, generalizando e perdendo de vista suas singularidades. O que é necessário a fim de se alcançar o conhecimento no caso da memória involuntária é um entendimento intuitivo desde dentro, que é exatamente o que acontece na busca bem-sucedida da memória involuntária. Os conceitos desenham círculos ao redor das coisas e esses círculos são “demasiado grandes para que algo possa se encaixar perfeitamente neles” (JAMES, Habit, p. 29). O verdadeiro empirismo reconhece que “as concepções prontas das operações cotidianas” (JAMES, Habit, p. 37) não servem para nada. Um novo esforço é necessário para cada novo objeto, a fim de se fazer justiça à sua singularidade, e considerando que não há dois momentos que sejam iguais na vida de alguém, nunca se pode compreender uma memória involuntária através da comparação. A atitude da vulnerabilidade corajosa é necessária para que tal esforço seja empreendido. Um empenho é necessário para se chegar ao cerne da memória, à verdade por detrás dela. A vulnerabilidade corajosa como postura requer admitir a memória como algo a ser considerado e experimentado de maneira plena, a despeito da dor que ela traz. A forma corajosa a ser assumida pela vulnerabilidade indica a natureza ativa dessa atitude: é preciso esforço para estar aberto à memória involuntária. Essa abertura é o que caracteriza o temperamento que James denomina como empirista obstinado (tough-minded).

James escreve sobre o temperamento no ensaio “O atual dilema da filosofia”. Na história da filosofia, ele distingue dois tipos dominantes de temperamento: os racionalistas complacentes (tender-minded), guiados por princípios, e os empiristas teimosos (tough-minded), que seguem a realidade(JAMES, Habit, p. 365). Não irei discutir as qualidades atribuídas a cada uma dessas categorias. O que é importante destacar aqui é que a atitude do empirista obstinado, com sua ênfase nos fatos, corresponde à disposição da pessoa que pode se beneficiar da memória involuntária. É preciso coragem para não se refugiar em conceitos e princípios, especialmente quando se trata da própria vida e do sentido de self. É mais difícil ser vulnerável à memória involuntária do que se proteger dela. Tornar-se obstinado (tough-minded) ao buscar a verdade implica tornar-se corajosamente vulnerável. O empirista obstinado leva a experiência à sério e, por isso, presta atenção à memória involuntária, mesmo se ela não se coaduna com a narrativa que ele sente que compõe sua própria identidade. O temperamento necessário para a obtenção do conhecimento sensível a partir da memória involuntária é marcado por uma disposição de abertura, atenção à experiência e coragem para explorá-la. O conhecimento que emerge da experiência da memória involuntária precisa ao mesmo tempo ser buscado e admitido pelo self, ao qual as experiências dizem respeito. Este self deve ser não só vulnerável mas também atento e corajoso; se esses elementos estiverem faltando, a memória involuntária torna-se-á nada mais que uma sensação.

Conclusão: a atitude de vulnerabilidade corajosa, exemplificada pelo narrador proustiano, requer tanto o empirismo obstinado e a coragem quanto a vulnerabilidade e a habilidade para escutar, mas, sem abertura, esse conhecimento sensível nunca será alcançado. O próprio James diz em seu ensaio “Pragmatismo e religião”: “A única razão pela qual eu posso pensar por que alguma coisa nova sempre pode surgir é que alguém deseje que ela esteja aqui” (JAMES, Pragmatism and Religion, p. 468).

 

Tradução de Carolina Cantarino

 


 

REFERÊNCIAS

BECKETT, S. Proust. New York: Grove Press, 1951.

BERGSON, H. Time and Free Will. An Essay on the Immediate Data of Consciousness. Tr. F. L. Pogson. New York: Humanities Press Inc., 1971.

HULME, T. E. Bergson’s Theory of Art. In: Speculations. New York: Harcourt, Brace & Company, Inc., 1924.

JAMES, W. Philosophy. In: The Varieties of Religious Experience. London: Penguin Classics, 1985.

JEPHCOTT, E. F. N. Proust and Rilke. The Literature of Expanded Consciousness. London: Chatto and Windus,  1972.

PROUST, M. Remembrance of Things Past. Tr. C. K. Scott Moncrieff and Terence Kilmartin. New York: Vintage Books, 1982.

______. A la recherche du temps perd. Paris: Bibliothèque de la Pléiade, 1954.

 

Recebido em: 1/03/2016

Aceito em: 10/03/2016

 


 

[1] Rosa Slegers é membro do corpo docente do Departamento de Artes e Humanidades do Babson College, em Massachusetts (EUA). É autora do livro Courageous Vulnerability (Brill, 2011).

[2] “Saisis-moi au passage si tu en as la force, et tâche à résoudre l’énigme de bonheur que je te propose.” (PROUST, 1954, v. 3, p. 446).

[3] “Dans leur gesticulation naïve et passionnée, je reconnaissais le regret impuissant d’un être aimé qui a perdu l’usage de la parole, sent qu’il ne pourra nous dire ce qu’il veut et que nous ne savons pas deviner.” (PROUST, 1954, v. 1, p.719).

[4] Also: “Art merely reveals, it never creates” (HULME, 1924, p. 151).

[5] Cf. A descrição de Jephcott sobre o que ocorre no momento privilegiado: as relações funcionais entre os objetos desaparecem e são “substituídas por um sistema mais complexo” (JEPHCOTT, p. 16-19).

[6] Veja-se também no Ensaio sobre os dados imediatos da consciência: “Encorajados por [um romancista audacioso], colocamos de lado por um instante o véu que se interpõe entre nós e a nossa consciência. Ele nos trouxe de volta à nossa própria presença” (BERGSON, 1971, p. 134).

[7] Nessa passagem, em particular, James está criticando Bergson.

[8] Nas próprias palavras de James o Sentimento de Racionalidade é “a sensação de suficiência do momento presente, do seu caráter absoluto – a ausência da necessidade de lhe explicar, considerar ou justificar” (JAMES, 1985, p. 318).

Conhecimento sensível (felt knowledge) e vulnerabilidade corajosa (courageous vulnerability): um estudo sobre a memória involuntária no livro Em busca do tempo perdido através das filosofias de William James e Henry Bergson

 

RESUMO: Propomos, neste artigo, pensar a relação entre conhecimento e vulnerabilidade: o modo pelo qual o conhecimento sensível pode ser obtido através de uma corajosa atitude de vulnerabilidade. Consideraremos episódios relacionados à memória involuntária no livro Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust; observações bergsonianas sobre o artista e a intuição; a experiência e o empirismo radical proposto por William James. O intuito é descrever de que maneira a vulnerabilidade pode alcançar um conhecimento que não se refugia nos hábitos de pensamento e se abre, corajosamente, ao novo.

PALAVRAS-CHAVE: Conhecimento. Vulnerabilidade. Memória involuntária. Experiência.

 


Felt Knowledge and Courageous Vulnerability: A Study of Involuntary Memory in Marcel Proust’s A la recherche du temps perdu through the Philosophies of William James and Henri Bergson

 

ABSTRACT: This paper proposes think about the relation between knowledge and vulnerability: the way in which the felt knowledge can be obtained through a courageous vulnerability attitude. We will consider episodes related to involuntary memory in Proust’s A la recherche du temps perdu; bergsonian observations about the artist and intuition; experience and radical empiricism proposed by William James. The aim is to describe how the vulnerability can reach a knowledge that does not take refuge in the habits of thought and opens boldly to the new.

KEYWORDS: Knowledge. Vulnerability. Involuntary memory. Experience.