Dados sobre a invisibilidade academicista ou quando Dona Bélgica vai à COP21

Por:

Luana Adriano Araújo, mestranda em Direito Constitucional na Universidade Federal do Ceará (UFC), atua no Instituto Verdeluz.

Levi Mota Muniz, graduando em Licenciatura em Teatro na Universidade Federal do Ceará (UFC), atua no Coletivo Pipa Azul e no Instituto Verdeluz.

Com a colaboração de:

Mariana Guedes de Oliveira, graduanda em Direito na Universidade de Fortaleza (Unifor), atua no Instituto Verdeluz.

Beatriz Azevedo de Araújo, graduanda em Direito na Universidade Federal do Ceará (UFC), atua no Instituto Verdeluz.

1,8 a 4ºC, podendo chegar a 6. De 1 a 6 espécies, dizem. Risco de extinção Global: 2,8% para 5,2%. 18 a 59 cms de mar até 2100. 95% de certeza de ação humana. 400 ppm5 de CO². 600 mil casos novos por ano. 78,6 milhões de toneladas em 2014. U$ 157 bilhões de dólares e/ou 2,4 milhões de vidas por ano. Números: aprendemos a contá-los, mas não a decifrá-los. Se a temperatura do mar aumenta 1,04 ºC ou se a cotação Dow Jones fecha em –1,04% em Nova York, que diferença isso faz na salubridade da água dos moradores da Comunidade da Boca da Barra, Fortaleza, Ceará? Que tipo de compreensão estes indivíduos têm acerca dos dados levantados por sumidades globais da temática das Mudanças Climáticas?

A disseminação de um conhecimento que nasce de grandes centros acadêmicos é muitas vezes lenta e de difícil acesso social. Isto se dá em virtude de fatores diversos e nem sempre claros, seja por vaidade na socialização do conhecimento por aqueles que o produzem ou pela ineficácia no uso da linguagem como instrumento de uma comunicação não sectária. Em face do costume entranhado na comunidade acadêmica conservadora, pautada por padrões dogmáticos e pela exigência de uma escrita – dita – “culta”, o retorno social do conhecimento produzido é atenuado, quiçá minado.

Enquanto substrato da estruturação de políticas públicas socioambientais, os dados técnico-científicos, semanticamente inacessíveis, acabam por justificar a implantação de mecanismos pouco incisivos. Transmutados em moeda de troca legitimadora, os citados arquivos quantificadores não se convertem em qualidade resolutiva. Ineficazes, mofam intelectual e politicamente.

Pensando, de maneira simplória, na ativação dos dispositivos utilizados para a resolução das problemáticas socioambientais, é possível dividir o processo em algumas etapas. Inicialmente, a percepção fotográfica da situação enfocada conduz à coleta de indicadores transliterados por um grupo específico – nata acadêmica – para a fixação de dados. Nata esta que detém o conhecimento necessário para “desnatar”/traduzir os dados, porém monopolizam a compreensão – e as consequentes traduções – do saber. Arrogância nem sempre se afigura como a motivação deste panorama. Em verdade, há uma quebra na fluidez da socialização do conhecimento, que permanece acastelado por não desembocar em traduções viáveis para o mundo cotidiano.

Pensar a linguagem como uma potente ferramenta de igualdade – considerando que esta é fomentada pela diversidade – escapa à compreensão de quem institui o modo correto de falar, a maneira polida de estar, ser e fazer. O problema não quer saber como você o chama. Mudanças Climáticas não é um compêndio de dados acessíveis unicamente a uma, aparentemente apartada do mundo real, camada econômica, política e academicamente apta. Mudanças Climáticas é sobre pessoas, igualmente vitimadas pela impossibilidade de conexão comunicacional.

Dona Bélgica, para muito além da além-mar desafetação francesa, é afetada pelo que, para ela, não representa mais do que algumas palavras televisionadas antes da novela. Bélgica, pessoa, moradora do Serviluz – comunidade costeira socioambientalmente vulnerável –, mãe de Letícia, desconhece que, enquanto a novela não começa, a temperatura média do planeta aumentou em 1º C, comparativamente aos níveis pré-Revolução Industrial, mas ela sabe a seu modo.

O saber de Bélgica, mais do que referenciado bibliograficamente, compõe-se, em verdade, por saberes. Por ser quem é, por morar onde mora, por estabelecer relações únicas com o meio em que vive, a consciência desta sobre o que circunda é peculiar. Sua intelecção não é melhor ou pior, apenas é. Qualitativamente, contudo, seu saber é diferente; Bélgica, em verdade, não possui o saber-poder de quem segura o cetro, de quem subiu tão alto que mal avista o olhar cansado de Bélgica no meio do dia – o cada vez mais quente meio do dia.

Segue, contudo, Bélgica. Referenciada numericamente em gráficos acadêmicos de segregação socioespacial – inacessíveis, quem diria, a ela. Bélgica sai todo dia para comprar o pão e a margarina. Erra, como qualquer um, esquecendo a chaleira no fogo, mas não olvida sua autoridade de mãe, ralhando com Letícia por não se encarregar de desligar o fogão. Bélgica também perde o olhar no horizonte, toma café com pão monoparentalmente, ao lado de sua companheira e filha, e se preocupa com as contas do final do mês.

Bélgica, a despeito da dita segregação, não padece de carência de ação. E ri. E chora. É mais que um número em uma pesquisa socioambiental. Ela pesquisa a vida, a seu modo e com seus parâmetros, com seu método de errâncias sinuosas por entre as vielas do Serviluz. Aglomera-se nos batentes de casas com suas vizinhas, papeando entre um tirar de piolhos da cabeça da filha e mais um esquecimento de café na chaleira – e novas ralhadas com Letícia. Ela existe e é desacreditada, tanto quanto o agir antropológico sobre o clima. Bélgica consome O², assim como o CEO da Shell, os dois de lados diferentes da televisão. E se pergunta quem são aquelas pessoas tão felizes na propaganda daquela concha, tão parecida com os búzios que sua filha insiste em trazer para casa. Não entende o que vendem, nem de onde sai este produto, tampouco os efeitos advindos do seu uso e exploração. Mas, de alguma maneira, há uma certa empatia com aqueles sorrisos, com aquela felicidade e com toda aquela – aparente – vontade de viver.

Enquanto a novela não começa, Bélgica segue. Ela mal sabe que nos bastidores do desenrolar da novela, uma teia internacional é tramada com fios políticos-representativos nas deliberações da COP21 – Conferência das Partes das Nações Unidas –, em Paris. Ignora que será representada e que ela, como cidadã de uma “nação acordante”, terá sua voz bradada por alguém que nunca a ouviu ou viu. Para além da traição dos protagonistas da novela das oito, Bélgica é traída quando invisibilizada, deixada no escuro por quem deveria holofotizar não apenas sua vulnerabilidade socioambiental, mas o que nela é também a força de sua existência. A já oscilante luz do Serviluz é enegrecida pela água que escorre da boca do bueiro – cada vez mais, com o agravamento da variabilidade do ciclo da água.

Isto parece refletir a mais clara realidade: com a entrada na pauta internacional da temática das Mudanças Climáticas, quem tinha voz, ganhou mais voz; quem não tinha, restou completamente emudecido por um sistema falaciosamente progressista e comunitário. Entre megafones e panos quentes abafadores, o clímax roteirizado desse teatro global institucionalmente respaldado, gira em torno de um número seco: 1,5º C. Número este que, se traído pelas expectativas da política mundial, aliada a um modelo de consumo progressivo e colonizador, tragará, até 2100, a casa da mesma Bélgica que – mal sabe ela – assistirá ao último capítulo dessa novela como figurante desavisada, espectadora da própria vida, literalmente boiando em quadros, estatísticas e categorias.

Bélgica, com tudo isso, sabe muito mais de si que qualquer número. Bélgica não joga dados com a própria existência, assepticamente quantificada por alheios. Valoriza sua vida, sua casa, sua filha. Bélgica é para as mudanças climáticas na mesma proporção que qualquer outro. E segue.

Mas, no calor das emoções apáticas do efeito estufa, o que Dona Bélgica tem a ver com Ban Kin Moon?