Lembranças do futuro: memória e escolha no filme Mr. Nobody


 Renato Salgado de Melo Oliveira[1]

 

O psiquiatra, diante de seu paciente sem memórias, propõe uma técnica antiga, que talvez possa funcionar: a hipnose. “Lembre-se de trás para frente”, diz ele valendo-se de uma bola de metal que flutua no ar para ditar o ritmo monótono de suas palavras. O paciente, um senhor muito idoso, diz que se recorda de uma memória muito antiga, de antes mesmo de ele nascer, em um onde anterior, neste lugar, ou tempo, no qual, ou quando, as crianças que lá aguardavam já sabiam de tudo que viria a acontecer em suas vidas. No momento antes de nascer, um anjo colocava o dedo em suas bocas, como um pacto de silêncio, e então se esqueciam de tudo; acontece que os anjos se esqueceram de silenciá-lo, nasceu lembrando de todo o seu futuro.

Esse paciente se chama Nemo Nobody (Nemo Ninguém), nasceu em 1974, e com seus 118 anos tornou-se, em 2092, o último homem a morrer de velhice, após a ciência ter conquistado um procedimento médico que torna as pessoas imortais. No leito, esperando sua morte, assim como esperou nascer, está preso a uma espécie de show televisivo que acompanha seus últimos dias como um grande evento, em meio a propagandas e participação interativa do público que pode votar se os médicos devem deixá-lo partir ou se devem tentar prolongar artificialmente a sua vida.

Nemo está no leito e um jornalista entra no quarto com um gravador muito antigo, diz ter roubado do museu da universidade e achou que seria melhor para deixar o velho mais à vontade. Quer um furo, uma entrevista, entrou escondido; Nemo se lembra de tudo e vai lhe contar a sua história de vida.

Mas Nemo se lembra ou não se lembra?

O velho conta que, com nove anos, seus pais se divorciaram, a separação acontece em uma estação de trem, a mãe vai partir e entra no vagão, estende a mão e o garoto corre em direção a ela e se junta à mãe. O garoto corre, o pai grita seu nome, “Nemo!”, ele olha para trás, perde o embalo, o cadarço se solta e o sapato cai (o dono da fábrica fez um acordo para comprar cadarços de baixa qualidade por um preço muito mais em conta), Nemo fica com o pai. O repórter diz que não está entendendo, afinal Nemo foi com a mãe ou ficou com o pai? Qual versão é a verdadeira? O velho responde: “Todas”.

Mr. Nobody é um filme sobre o tempo, escolhas, acaso e multiplicidade. Ainda criança, Nemo pensa que ao evitar a escolha pode suspender o tempo, mas está errado, não escolher é, na verdade, a escolha de se pôr à mercê, o mundo acaba escolhendo por ele. Em cada um desses momentos em que a vida impõe múltiplas possibilidades o filme também se multiplica em cada uma delas: o divórcio do pai, as três mulheres que conheceu…, em cada uma delas, toda uma temporalidade própria se configura. Quais são verdadeiras? Todas! Isso é possível, pois Nemo tem essa memória louca, uma memória do futuro, e a verdade do futuro é outra distinta do passado.

A memória do futuro se fragmenta em suas infinitas cenas ou paisagens, todas elas são verdadeiras, pois são potências. A linha temporal que conduz essas narrativas futuras não é de ordem cronológica ou excludente (só uma história verdadeira: é isso ou aquilo), são linhas de pura intensidade, rizomas, cada uma conduzindo a mais mudanças (é isso e aquilo). Por isso todas são verdadeiras, pois a verdade escapa da lógica da afirmação do dado, para a afirmação do porvir, uma memória do futuro, uma verdade do futuro. O Ninguém de Nemo não é um esvaziamento, apesar de ser uma falta, é justamente a negação da escolha, de uma ideia de escolha, a falta de uma identidade ser isso ou aquilo. Devem deixa-lo morrer, ou prolongar artificialmente sua vida? Ligue e dê a sua opinião!

A vida de Nemo não pode ser narrada através de uma linha, e por isso o filme produz uma superfície. Em uma das versões de Nemo, ele regressa todo domingo a um mesmo lugar, na esperança de encontrar Anna, a mulher que ama, a vida dele se torna fixa neste momento da espera, como se, em uma suspensão, o tempo aguardasse o momento de voltar a fluir. Essa versão de Nemo enche uma parede de sua casa com fotos, são paisagens do fluir virtual de sua vida, estratégia para orientar forças capazes de manter a suspensão violenta do tempo. A superfície do filme é como essa parede, infinitas paisagens virtuais para suspender o tempo e evitar a escolha, ao menos uma certa escolha. Mas por que evitar a escolha se todas elas são verdades?

Antes de procurar uma resposta para essa questão, precisamos entender que essas paisagens não são isoladas, não são ilhas, uma atravessa a outra: Nemo chama o filho que tem, em uma vida, pelo nome do que tem em outra; as sensações, os rostos, os nomes, tudo transita de uma paisagem para outra. Isso acontece porque não se trata de projeção futura, de exercício de inventar um futuro, são marcas da memória, nesse lugar em que a memória quase se torna indissociável do sonho. Nemo lembra-se do futuro, por isso essas rupturas, essas confusões; é a nebulosidade e a incerteza que marcam as paisagens.

A memória é mais próxima da poesia que da prosa, os gregos já sabiam disso, e não se trata apenas de uma questão de técnica mnemônica, é também um problema estético. A memória pode ter um conteúdo relativamente narrativo, mas o que a produz são os ritmos, as pulsões, as quebras de sentidos, a nebulosidade dos signos e a crueldade com as palavras.

A superfície filme não é feita só de memórias futuras, existem outras forças humanas que agem nela: o sonho e a imaginação. Em uma das paisagens, Nemo vai para Marte, outra é uma cena de teatro, ambas frutos da máquina de escrever. No entanto, há sonhos: todos vestidos iguais, todos os carros iguais, camas iguais, uma etiqueta de preço sempre presa no abajur ao lado da cama. Esse sonho parece nos apontar para a escolha que Nemo quer evitar. Devem deixá-lo morrer, ou prolongar artificialmente sua vida? Ligue e dê a sua opinião!

O jornalista insiste, quer saber o que é ou não verdade – ele não tem culpa de não entender, é o trabalho dele. Nemo idoso o encara e interroga: como pode ter tanta certeza de que ele próprio é real, que ele próprio é verdade? E logo Nemo afirma que ambos não são mais que o sonho de um menino de nove anos, em uma estação de trem, diante de uma escolha impossível. Um menino que não podia escolher, por não saber o que adviria de suas possibilidades, e na esperança de cavar uma fuga, lança-se a lembrar do futuro, e agora não pode escolher justamente por conhecer as suas possibilidades. Novamente, o tempo se encontra suspenso na escolha, fotos nas paredes, paisagens múltiplas.

Os sonhos parecem nos dar uma pista para conhecermos que escolha é essa que quer ser negada, diante da qual Nemo fica suspenso no tempo. Devem deixá-lo morrer, ou prolongar artificialmente sua vida? Ligue e dê a sua opinião! As roupas iguais, as camas iguais, os carros iguais, a etiqueta de preço. O sonho parece ser um ensaio do desejo aprisionado pela lógica capitalista do consumo, escolher é consumir: escolha o carro, a cama, o carro, o abajur. A interação se tornou uma questão de escolha (já ligou?), tudo na vida foi reduzido a uma noção consumista de escolhas. Porém, a promessa era de que essas escolhas seriam a liberdade, o ser do indivíduo, em que cada um poderia se afirmar único, mas os carros são todos iguais, e as roupas e as camas. O problema dessa escolha, que causa a angústia do menino de nove anos, em pé na plataforma, é que as suas possibilidades já estão dadas de antemão (o pai ou a mãe; qual das três meninas?). São escolhas que negam qualquer possibilidade de futuro, pois se limitam, na verdade, a um acervo de decisões já tomadas pelo mercado, pela família, pela ciência, pela verdade, e que reduzem a experiência da vida a um finito do aceitável, do moral, do lucro, do certo. Qual é a escolha certa? É a pergunta que se faz o tempo todo Nemo, enquanto está preso a essa lógica de verdade; mas, ao conseguir produzir um novo sentido para a escolha, nesse processo de lembrar o futuro, finalmente entende que não há escolha certa, todas elas o são na medida em que aceitem a vida – “não tenho medo de morrer, tenho medo de não ter vivido o suficiente”, diz ele ao jornalista.

Não importa quantas possibilidades a escolha dê a você, sempre será finita, é o que Nemo Nobody está querendo nos dizer, sempre será finita. Transformar a escolha em uma possibilidade realmente infinita é um ato de resistência, de provocação. Exige que abdiquemos do possível, do dado, em favor da construção de uma alternativa futura, não que seja certa no futuro, mas que, como a lembrança do futuro, tome para si esse furor do impossível, do incerto, do nebuloso que existe além do horizonte definível. É preciso que seja uma alternativa em branco, sem nome, um Mr. Nobody, uma borda. Ela precisa ser criada, inventada no instante em que a bifurcação da escolha se apresente. Só assim se faz possível tornar a escolha realmente infinita, pois diante de n alternativas, escolhemos a n+1, sempre +1 em direção ao infinito. Só assim o mundo se torna um espaço de produção da diferença, no mais estamos escolhendo os mesmos carros, as mesmas roupas, abdicando do devir em nome do consumo da vida.

O menino pode retornar ao tempo, viveu todas as vidas possíveis em um instante, vê o trem partindo com a mãe, o pai derrotado na plataforma. Depois que o trem passa, percebe que existe um outro caminho para além do trilho, que não se mostrava como alternativa, um caminho que ele achou, e ele corre, foge por essa estrada.

 

Recebido em: 14/11/2015

Aceito em: 14/11/2015 


[1] Graduado em História e mestre em Divulgação Científica e Cultural, ambos pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Atualmente é doutorando em Teoria e Crítica Literária na Unicamp. E-mail: renatosmo@gmail.com

Resenha


Mr. Nobody. Direção: Jaco Van Dormael. Produção: Jean-Yves Asselin. Roteiro: Jaco Van Dormael. [S.l.]: França, Reino Unido, Bélgica e Canadá, 2009. 35mm (157 min), Dolby Digital, color.