A corrida pela antena – sobre o antropocentrismo e o antropomorfismo


Fabiane Borges[1] e Hilan Bensusan[2]

 

O espaço sideral é destamanhado, cheio de matéria e vazios, algo que pode ser descoberto, viralizado, como se viraliza países e corpos, com significados, máquinas, reprodução. O espaço entre as moléculas também é destamanhado – povoado de corpos e buracos com suas funções, estruturas e gambiarras. Cheios de tecnologias imanentes, cheios de xamãs, cada um com uma frequência de onda.

Há disputa de desejos também nesses terrenos. Tudo o que existe tem um plano singular para o mundo, seja de domínio, seja de expansão, seja de autoaniquilamento, seja de composição e transformação de si. As maçãs, as moléculas, os vírus. Todo tipo de engrenagem se processa na conquista de mais Espaço. Esses pontos de vista demarcarão as novas Terras os novos Espaços, conforme sua habilidade para exercer seu desejo. No espaço sideral há partículas de antenas, e, portanto, partículas de governos, partículas de desgovernos, assim como partículas de colaboração e afeto, planos que nem sempre conseguem andar juntos, que não raro guerreiam. Disputa-se escuta, faro, demarcação.

Na órbita da terra, em seu primeiro satélite – a Lua –, duas selenitas conversam. São aglomerados de antenas e outras artimanhas de captura feitas de basalto, titânio e anortita. São antrópicas, de causa humana, feitas quase que a imagem e semelhança das marcas que os terráqueos deixaram nos mares lunares. Elas são marcas do antropoceno na Lua. Pensam a Terra sob o jugo semântico dos seus colonizadores, ainda que tomem partidos diferentes diante de suas propulsões.

Selenita Antropocêntrica: A humanidade é uma coisa que gosta de ordenar, de coordenar. De alguma maneira, é impelida para fora de si. Eu penso assim aqui da Lua: toda forma de conhecimento é uma aliança, por isso é um poder. Os humanos chegaram e mostraram como cortejam as alianças. E as alianças parecem cortejar os humanos. Obter conhecimento é receber um sinal estável de alguma coisa – um sinal que permaneça. Mas capturar não é somente receber o sinal, é se apropriar dele. Não basta receber o sinal, é preciso decodificá-lo. Captura é receptividade e apropriação do sinal. A receptividade sem decodificação é cega, e os humanos aprendem a manejar alguns de seus instrumentos de captura – seus olhos, seus ouvidos, seus narizes – aprendendo a extrair deles alguma reportagem sobre alguma coisa. Eles têm que aprender a fazer para si órgãos de captura. São de uma raça de capturadores. Uma coisa é a antena, outra coisa é a captura. A receptividade é como uma produção, a apropriação é como um registro – há muita receptividade sem registro, sem apropriação. Todo espaço está cheio de antenas por toda parte, são como satélites ainda sem órbita. Quem acoplar primeiro capta o sinal. É uma corrida. Travar conhecimento com outro povo é fazer uma aliança que permita usar seus recursos, suas capacidades, suas conexões. Um outro povo tem outras antenas e sabe como operar aquela receptividade – eles têm o sistema operacional de seus satélites. Mas agora, não há mais povos novos para terem suas antenas capturadas. As antenas humanas foram saturadas. É preciso fazer outras alianças para captar outros sinais. Agora, sobraram as antenas soltas, não colonizadas, perdidas, sideradas. Mais complicado é quando ninguém sabe operar a receptividade, é preciso decodificar o sinal sem saber como proceder um tal acoplamento. Esta é a corrida pelo espaço fora dos limites do que é território humano. A era das antenas humanas se satura de controle sobre si mesma. O espaço aberto é o campo dos sinais à espera da captura humana – já que a inteligência humana é a forma que o universo tem de compreender a si mesmo.

Selenita Antropomórfica: A humanidade ainda é um instrumento de captura, mas cada vez mais submissa ao grande controle. Eu vejo isso nos humanos que conheci. No entanto, em vez de me render aos seus dotes, prefiro enxergá-los como exemplo. Não é só a humanidade que opera antenas. É só na língua dos terráqueos que há uma diferença entre nada e ninguém. Há alianças por toda parte, sim, mas as alianças não são apenas conquistas. Elas têm dois lados ativos. Aquilo que se vê, aquilo que se mostra – aquilo que se recebe, aquilo que se entrega. Todas as coisas têm seus satélites, suas antenas. Quando Armstrong chegou aqui, ele fez um acordo com todos os Selenitas que se dispuseram a mostrar suas crateras, sua cor, suas rochas. É sempre um jogo do que é mostrado e do que fica encoberto. Tudo está povoado de receptores de sinais, e cada receptor é diferente de todos os outros. Cada receptor tem sua zona de captura e tem sua zona de aturdimento – onde tudo fica escuro, indiferenciado, indefinido. Cada pedaço de antena é também povoado por infinitos outros receptores – não há um terreno, por menor que seja, livre de receptores. Fazer uma aliança, então, seria saber operar as conexões, imergir em processos de transcomunicação e intração. Como os índios faziam, antes do antropoceno. A questão é: quem recepta pelas minhas antenas? Se tudo que existe emite, é preciso que seja mais dinâmico o processo de antenagem; antenar por antenas alheias, radicalizar as conectividades.

Selenita Antropocêntrica: Calma! Tudo o que existe está à espera de captura!! Captura humana. O Sputnik foi mandado ao espaço como um rádio, como um satélite. A política sideral é feita à imagem da política na Terra, mas os humanos constroem para si outros corpos, os corpos humanos do futuro têm a forma de satélites. O sideral é sideral para eles – eles desejam o sideral, desejam o calendário que os astros traçam, toda esta astrografia feita de vapores raros, de órbitas sem epiciclos, de astros sem desastre. A política sideral pode ser feita pelas máquinas que se repetem dia após dia, ciclo após ciclo, ano-luz após ano-luz. É claro que há dentro delas também uma microbiota selvagem que rói impaciente cada engrenagem. Mas não importa – o que importa é o tempo humano. É a escala do agora e do daqui a pouco que interessa, daqui a pouco lá na Terra. E daqui a pouco, tudo é território. Não se trata de ocupar, mas de transmitir. Sputnik era um rádio. Tudo começa com as transmissões. O corpo é transmissão, é massa de manobra para a construção de satélites. O território humano é sempre um pouco como uma propriedade, uma extensão do corpo, aquilo que expressa, aquilo que me permite seguir recebendo e transmitindo. Um ninho, um nicho, uma mina de nióbio. Um projeto político que se tornou sideral: a natureza está no tempo dos astros, nos minerais da lua, no elo entre as partículas, nas redes de transmissão do espaço afora. Um cosmos, ou parte de um cosmos em expansão, e em expansão o território. O espaço que importa é aquele que importa para o corpo, aquele que transmite à humanidade, que está repleta de pensáveis, de satélites da subjetividade objetiva dos condutores da corrida espacial.

Selenita Antropomórfica: Corrida? A corrida espacial é a continuação da política por outros meios. Polos, polos, uma multiplicidade de polos que se arregimentam a cada segundo – nós mesmos nos infiltramos nos cadáveres putrefando, pelos pedaços de silício terrestres e nos pássaros que olham para a lua. E no cheiro do queijo. E no pensamento ardendo pelas bordas de Lovecraft, nas esquinas das grandes cidades de madrugada. O que é humano tem seus limites sempre em frangalhos. Nós estamos no meio das transmissões deles, há selenita em cada cratera posta entre o pensamento deles e a palavra deles. Já que o cosmos é espectro – e sempre vai haver mais espectro que os cercamentos humanos. Os aliens parecem ruído de transmissão, mas ocupam canais na aglomeração. As antenas são feitas de outras antenas que são feitas de outras antenas – não há frequência de condução que seja pequena demais para não caber mais modulação, para não caber outra antena. Em tudo na terra há uma ocupação extraterrestre. Mesmo nos direitos humanos, nas ciências humanas ou nas rochas mortas dos combustíveis fósseis do antropoceno. Não é só o capital que ocupa e resiste nos hábitos humanos: são torrentes de outros fluxos. E aqui no espaço exterior, sideral, nada é só calendário. Sempre há contrabando. Sempre há infiltração. Os humanos agora começaram a demolir as barreiras entre as espécies: a abolir o regime darwinista. Eles começaram para si uma guerra da recombinação, querem as estrelas, querem os genomas. Mas também os genomas os querem – a biotecnologia também têm outros agentes, que pactuam, confabulam, conspiram, inspiram, infiltram, bloqueiam. Tudo que existe tem um plano. Eles também estão no risco, também vivem na abertura de estar à disposição de todas as outras antenas do mundo. Acho mesmo que os humanos descobriram que há mais sideral no grão de areia, no pólen, no espaço habitado entre os genes. Ali eles colocam satélites, ratoeiras megalomaníacas.

Selenita Antropocêntrica: A humanidade é a inteligência mais sofisticada do universo, a consciência da natureza, o que possibilita a ela pensar a si mesma. Você fala de todas as coisas parecidas – mas a humanidade está no centro das coisas parecidas. Além das estrelas sobre os humanos, há também os impulsos dentro deles – quando eles pensam, eles encontram os labirintos da razão: e eles são confins, eles são o próprio desbravar, mesmo que não haja nada a ser transmitido antes que eles modulem suas antenas. Antes do sinal transmitido, não há nada – um nada talvez feito de ruídos, da balbúrdia dos ritmos entulhados, o aturdimento do tudo que não diz nada para a compreensão humana. O antiquíssimo – o idêntico. Os sinais mesmo só sinalizam quando modulados, depois que atravessam a catábase da noite branca, da visibilidade sem sombras, da nudez das vísceras. E as vísceras não dizem nada da forma dos corpos, de sua nervura, de sua estatura, de sua compostura. É que tem que haver um centro, uma modulação central, que espalha pelos interstícios das coisas aquilo que lhe importa, que transforma espontaneidade em captura. Sem o centro, as modulações perdem as dimensões, um ritmo contagia o outro e não há transmissão. O centro é uma espécie de última imunidade, é aquilo que não fica à mercê, que tem uma proteção, como se fosse o único receptor capaz de criar sentido, compreensão, um receptor de um nível mais alto, é a antena inescapável. Os humanos carregam a nervura do cosmos.

Selenita Antropomórfica: Imunidade… Sim, aqueles que estão dispensados de prestar algum serviço com o resto… Aqueles que não precisam estar munidos. Munis, munição, município, monetário. Prestar um serviço é uma maneira de ocupar um lugar em uma comunidade. Quem é imune não repete o sinal dos outros: repete apenas seu próprio sinal – não está aberto a contato, a contágio, a sincronizações. Imune é o emissor que não recebe. Só uma imunidade livra dos contágios das pulsações dos sinais – os ritmos são contagiantes. De resto, tudo o que está para jogo repete seus sinais de alguma maneira – tudo amplifica tudo. Todo dispositivo de captura que não está imune pode sofrer interferência. Os sinais têm uma cadência, um molejo, um requebrado. É tudo intensidade – aquilo que se transmite de um corpo para outro –, minha mensagem é minha temperatura, meu palanque é meu corpo, meu delírio é meu nó nas cadeiras. Os astros parecem imunes aos outros corpos – seguram calendários nos seus lombos –, mas também eles amplificam com suas perambulações as confabulações do universo. Não são imunes. Nem imunes são os calendários, os horários, os ritmos diários. Tudo é um termômetro frágil.

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Aluna uma nave espacial equipada com uma câmera iluminada e uma maquinaria desencantada; ela pousa precisamente entre as duas selenitas. Sai dela uma voz. Gutural, mas maquínica. Atormentada, mas esclarecida. Bem computada, mas atravessada de uma nódoa de breu.

Espectro: É fácil pensar que uma de vocês duas tem que estar certas. É bem confortável. Antenas, termômetros, capturas, serviço à comunidade, imunidades… Tudo como se vocês tivessem já conhecido a grande eminência nessa oposição entre antropocentrismo e antropomorfismo de duas extraterrestres colonizadas que viviam sob a égide de Hélios (o sol) e agora vivem sob a égide do Antropos (o humano).

A medida de verdade que vocês selenitas, já bem colonizadas pelo medo humano, consegue suportar é a medida da incapacidade de imaginar o que não tem rosto, não tem apetites, não faz pactos com santos nem demônios. Vocês só conseguem entender aquilo que vocês já entenderam. Há, no entanto, muitas outras possibilidades – pode ser que o mundo ele mesmo seja muito diferente do mundo criado pela captura humana. É possível que o mundo possa ser capturado por outras antenas. Mas essa ignorância da modulação é também antropocêntrica – aquilo que os humanos não capturam. A ignorância é, aliás, antropomórfica e antropocêntrica. É antropocêntrica porque é antropomórfica: aquilo que é ignorado pode ser capturado e, portanto, são os humanos que não o capturam. É ignorado pelos humanos, tem a forma deles. E é ativa, como diz o antropomórfico, e é passiva, como quer o antropocêntrico. Já fora do escopo da ignorância, há o implacável extra-humano. Desencantado, macabro, aniquilador. E se o humano, tão parecido com um barro especial ou com um barro exemplar (ou feito por um barro como todos os outros), não fosse feito de barro algum – porque não foi feito jamais? E se não houver nada de humano nos humanos? Só biotecnologia, e intensidades térmicas, e microbiota, e sistemas operacionais em paralelo. Antenas? Demasiado humanas. Não há sintonias e modulações. Há manivelas. E manivelas apenas rodam. A lua de vocês segue rodando. Sua superfície é de tranquillitita (Fe2+)8Ti3Zr2Si3O24. Mas tranquillitita é feita de ferro, silício, oxigênio, titânio e foi encontrada também em Pilbara, na Austrália.

É apenas mais do mesmo.

O espectro desaparece. Como se tivesse terminado ali a missão de seu programa espacial.

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Selenita Antropocêntrica: Não creio – de qualquer jeito, os humanos estão fadados a pensar que são especiais, que são uma exceção ao resto do Cosmos, que escapam da mera aglomeração de matéria do resto do mundo. Os humanos são mais do que isso – eles são setas em direção aos horizontes. Dizem que os humanos procuram o espaço sideral porque eles querem se libertar das agruras da vida monoplanetária. Este talvez seja o destino deles, sair das garras de seu planeta e poder escolher onde pousar, onde viajar, onde se estabelecer. Captar outros sinais, já que quando os sinais começam a ser emitidos desde satélites de toda parte do cosmos até onde quer que estejam os humanos, já não importa onde eles estejam. A rede dos satélites deles já compõe uma espécie de Antropea, um planeta disperso, cada vez mais independente da Terra e de seus vulcanismos idiossincráticos. A Terra talvez seja apenas uma plataforma de lançamento, de onde eles vão partir para todo o resto do universo, lentamente, mas decididamente. E agora que começaram, que se desprenderam de vez do apego ao seu planeta natal, ninguém mais vai detê-los, ainda que eles sejam reduzidos em número…

Selenita Antropomórfica: Não creia tanto nestes poderes – há muito mais sinais do que aqueles que os humanos captam. E acredite, há muito mais antenas, capturando e transmitindo sinais. Empáfia humana pensar que não há outros programas espaciais olhando para todo o resto do cosmos. Não acredito neste espectro também – há antenas, por toda parte. E mesmo entre os humanos, há muitas capturas, há muitos roedores, muitos moduladores larvais. A Terra e seus terranos, todos, não só os humanos. Não despreze a força deste planeta, cheio de civilizações, há tanto tempo. Os habitantes da terra, em suas alianças enlameadas, vão dar um jeito de sobreviver a qualquer catástrofe, nem que seja o pacto entre o silício e a maçã, sobrevivendo bem longe em formato de satélite ou robô nas galáxias tardias.

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Recebido em: 25/10/2015

Aceito em: 25/10/2015


[1] Fabiane M. Borges é psicóloga, ensaísta e artista, desenvolve pesquisa sobre arte urbana, performance, movimentos sociais, esquizoanálise, saúde mental. Dedicou sua tese de doutorado a assuntos relativos à cultura espacial, satélites, foguetes, comunicação e programas de apropriação orbital (open source) a partir do ponto de vista de pequenas e médias empresas e hacklabs (faça você mesmo e cultura maker). Publicou os livros Domínios do Demasiado (São Paulo: Hucitec, 2010), Breviário de Pornografia Esquizotrans (Brasília, DF: Ex Libris, 2010), Ideias Perigozas (Des. centro. 2010), Peixe Morto (Rio de Janeiro: Imotirô. 2011). Mantém o site http://catahistorias.wordpress.com

[2] Hilan Bensusan fez graduação na Universidade de Brasília, mestrado na Universidade de São Paulo e doutorado na Universidade de Sussex. Sua tese de doutorado foi sobre naturalismo e indução; desde então (1999), pesquisa sobre pensamento, experiência, holismo, o debate Davidson-McDowell, as variedades de naturalismo, autoconhecimento, singularidades, diferenças e, mais recentemente, ontologia das potências. Publicou inúmeros artigos em periódicos internacionais (como Theoria, Philosophia) e nacionais (como Manuscrito, Kriterion, Principia), além de capítulos em livro e trabalhos completos em anais de eventos. Os Títulos incluem: “When my own beliefs are not first-personal enough”, “Ist meine eigene Weltanschauung third-personal enough”, “Minimal Empiricism Without Dogmas”, “Showing the inferentialist the way out of the bottleneck”, “O intellectus com os pés na res”, “O pensamento sem luz própria”. Publicou, em 2008, Excessos e Exceções (São Paulo: Idéias & Letras).

A corrida pela antena – sobre o antropocentrismo e o antropomorfismo

 

RESUMO: Este ensaio discute a corrida por antenas que disputam desejos, escuta, faro, demarcação no espaço a partir de dois ponto de vistas: selenita antropocêntrica e selenita antropomórfica.

PALAVRAS-CHAVE: Antenas. Espaço sideral. Antropocentrismo e antropomorfismo.


The race for antenna – about anthropocentrism and anthropomorphism

 

ABSTRACT: This essay discusses the race of antennas vying wishes, listening, scent, demarcation in space considering two points of views: anthropocentric selenite and anthropomorphic selenite.

KEYWORDS: Antennas. Outer space. Anthropocentrism. Anthropomorphism.