Entrevista: Richard Wilk

Cientistas precisam reconhecer a dificuldade de conexão entre a vida cotidiana e a abstração do clima, aponta antropólogo da Universidade de Indiana, nos EUA

Por Maria Teresa Manfredo

 

Quando se trata de antropologia do consumo e da alimentação, Richard Wilk é considerado um dos principais estudiosos da área. Lecionando e fazendo pesquisas na Universidade de Indiana, em Bloomington, EUA, desde a década de 1980, já editou livros como Households: Comparative and Historical Studies of the Domestic Group (1984), The Household Economy: Reconsidering the Domestic Mode of Production (1989), Economies and Cultures: Foundations of Economic Anthropology (2007) e Rice and Beans (2012) escrito em conjunto com antropóloga brasileira Lívia Barbosa. Nesta entrevista concedida na Universidade de Indiana, Wilk fala sobre mudanças climáticas, papel dos cientistas no mundo atual, além de abordar temas como a importância das ciências humanas, justiça distributiva e a relação entre moralidade, consumo e meio ambiente.

 

ClimaCom – O tema das mudanças climáticas vem emergindo nos últimos anos de maneira intensa, tanto no debate acadêmico, quanto no discurso cotidiano das pessoas. Poderia falar um pouco sobre isso e sobre a relação do tema com a antropologia?

Richard Wilk  – Realmente, um grande volume de um rico material tem sido produzido sobre o assunto e até mesmo muito mais pessoas do que podemos imaginar estão envolvidas com o tema de mudanças climáticas. Eu penso que minha preocupação a respeito disso veio muito antes do que para muitas pessoas. Quando eu comecei a tratar com outros antropólogos sobre mudanças climáticas, eles apenas diziam “oh, de fato não há relação com antropologia”.  A antropologia é uma disciplina que, devagar, e só recentemente, está se aproximando do tema. Quando tratamos desse assunto, entretanto, precisamos considerar as diversas variantes – entre países e entre classes sociais, entre população urbana e população rural – a respeito do clima e a respeito do entendimento sobre o que está acontecendo com o clima. E mais: há muitos países onde as pessoas estão muito dispostas a ouvir o que os cientistas têm a dizer.  Por outro lado, até agora, os cientistas não têm oferecido muito no sentido de detalhar recomendações a respeito de como nós podemos reduzir a quantidade de carbono emitido na atmosfera, por exemplo, a não ser sugerindo atividades que possam desembocar numa depressão econômica ou recessão.

Estou ilustrando dessa forma, porque penso que há um lado que envolve consumo nessa questão da mudança climática, que é também uma questão de propriedade comum e de justiça distributiva, sobretudo no sentido de que um acordo internacional sobre o tema é muito difícil, pois mudanças climáticas e ações como emissões de gases na atmosfera estão extremamente identificados com questões de riqueza e pobreza.  E, em especial, países mais pobres não enxergam razões para eles colocarem limites em suas emissões de carbono, quando países maiores e mais ricos parecem não estar fazendo muito nesse sentido, também. Então, mesmo países como Grã-Bretanha e Dinamarca, que são realmente entusiasmados e relacionados com a ideia de reduzir as emissões de carbono, em muitos casos, o que fazem é somente mudar isso de um lugar para o outro.  Assim, se você compra coisas da China, a emissão realizada durante a produção desses bens ainda vai para a atmosfera, mas isso não é contado como sendo seu; exatamente porque se trata de algo feito na China. Isso é absolutamente ridículo no meu modo de ver.

 

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Fotografias de Ricardo Lilika que fizeram parte da instalação “Fotocosmografias”, montada na exposição “Aparições”, em maio de 2015.

 

ClimaCom – Isso reforça a ideia de que as mudanças climáticas não são um fenômeno ou questão apenas nacional?

Richard Wilk – Sim. Até que nós comecemos a pensar efetivamente que as mudanças climáticas não são um fenômeno apenas nacional, será muito difícil estabelecer uma abordagem satisfatória. Em outras palavras, nós temos grupos de pessoas ricas e cosmopolitas em todos os países. Nós temos grupos de populações rurais pobres, que dependem do ambiente natural para sua subsistência, em todos os países. Então, não é verdade, por exemplo, que Estados Unidos e Canadá tenham dois problemas diferentes quando pensamos em mudanças climáticas. De fato, os problemas são muito melhor distribuídos quando pensamos numa alta classe urbana global, uma baixa classe urbana global e em uma população rural empobrecida. Outra coisa que penso é que os antropólogos precisam contribuir para pensar as relações sobre mudanças climáticas, não somente como um entendimento de suas conexões políticas – o que é muito claro no caso dos Estados Unidos. Os antropólogos podem contribuir no entendimento de que as pessoas não experienciam o clima. O clima, em si mesmo, é uma abstração porque ele se refere a médias e fórmulas, e médias e fórmulas não existem, exceto no papel.

Então, o que as pessoas percebem é o tempo, elas percebem a ida e vinda das estações, elas percebem que a primavera chegou um pouco mais tarde, mas elas podem não perceber isso como um problema. E eu penso que isso realmente é um tremendo obstáculo para o pensamento e ação em torno das mudanças climáticas, porque pode parecer que o que nós estamos argumentando, enquanto cientista, não é sobre nada que envolva a vida cotidiana.   Essa é uma questão para a antropologia: pensar porque é tão difícil as pessoas conversarem sobre o tempo e não conectarem a isso uma grande abstração chamada “clima”. E eu penso que essa conexão poderia servir para mudanças de atitude. Isso acontecerá muito mais se, enquanto cientista, reconhecermos essa dificuldade de conexão entre a vida cotidiana e a abstração clima, ao invés de esperar que as pessoas entendam o que estamos querendo dizer, quando tratamos de mudança climática.

ClimaCom – Mudanças climáticas é um tema também associado à questão do consumo. É possível afirmar que essa associação carrega consigo um julgamento moral sobre o ato de consumir?

Richard Wilk  –  A antropologia está sempre reivindicando ser a portadora da noção de relativismo cultural, isso faz parte do seu núcleo enquanto ciência. Ao mesmo tempo, sempre que pensamos sobre consumo, não podemos evitar pensar sobre moralidade. Isso quer dizer que, melhor do que excluir a moralidade de nossas análises, devemos fazer o que o relativismo cultural sempre fez muito bem, que é você pensar sobre qualquer questão a partir do ponto de vista das pessoas envolvidas com ela, ter empatia pelo modo como as pessoas pensam e sentem. Mas isso não significa que nós iremos esquecer nossos guias éticos enquanto cientistas. Pelo contrário, significa não levar os pontos de vista das pessoas como verdades absolutas, mas considerá-los como portadores de conteúdos significativos.

Sobre mudanças climáticas, eu penso que fundamentalmente o tema envolve uma questão moral a partir da qual você se sente responsável por destruir o planeta. Você se reconhece como parte disso, ao mesmo tempo em que reconhece a sua insignificância nisso tudo. Mas, por exemplo, quando os estudiosos falam sobre resíduos sólidos… é tão moralizante! Moralidade é diferente de ser moralizador. Considerar a moralidade é algo muito mais complexo do que ser moralizador. É fácil dizer: “o lixo é um demônio”, “vamos parar de produzir lixo para salvar o planeta”. O problema é: fazer isso é provavelmente impossível.

ClimaCom – O senhor poderia falar mais sobre isso e sobre o que pensa sobre o ato de consumir?

Richard Wilk  –  A definição de consumo não é simples. Recentemente eu estive em pelo menos duas conferências nas quais nós gastamos a maioria do tempo discutindo sobre o que é o consumo. Se você define o consumo de uma maneira mais ampla, podemos dizer que todo animal consome e defeca. É como a vida funciona. Mas, por exemplo, alguns tipos de consumo: sentar em casa e ler um livro… Talvez você esteja usando aquecimento e luz. Melhor: sentar num campo, num dia ensolarado e ler um livro –você estará usando roupas, e o livro teve de ser impresso de alguma forma, em algum lugar… Você percebe? É simplesmente inescapável. Tudo o que fazemos, de maneira ou outra, é uma forma de consumo. Então, ao invés de condenar todo esse processo, nós devemos focar nas coisas que podem fazer a maior diferença, o mais rápido possível.

Tenho um sentimento pessoal sobre isso, e ninguém gosta da ideia. Eu penso que é nos super ricos que devemos realmente focar nossa atenção. Porque uma estrela de cinema está provavelmente emitindo 500 ou 5 mil vezes mais carbono do que um estudante universitário, por exemplo. O estudante universitário está pensando em como reduzir a sua emissão. A estrela de cinema pode estar dirigindo um Prius, ou ter um na garagem. É claro que esse é só um exemplo. O que quero dizer é que há uma espécie de greenwashing pessoal, que esconde severo consumismo realizado pelos super ricos. Em termos de recursos comuns, algumas pessoas estão usando muito, muito, muito mais do que elas estão dividindo. E elas não têm que pagar os custos disso. De alguma maneira elas estão despejando isso em cima de outras pessoas. Então isso se torna uma maneira de transferir a riqueza das pessoas pobres para as pessoas ricas, bem como o lixo das pessoas ricas para as pessoas pobres. Ao meu ver, essa é a grande questão moral que deve ser levada em conta, e envolve desigualdade e recursos comuns.

 

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ClimaCom – Uma das suas últimas postagens no blog da Associação Americana de Antropologia leva o título “Green Consumerism Is No Solution” (Consumismo verde não é a solução). Isso quer dizer que o chamado consumo verde não é uma saída possível para os problemas ambientais que enfrentamos atualmente?

Richard Wilk  –  Eu penso que o consumo verde ou consumo consciente tem sua importância, como um ato simbólico e político que indica uma disposição para o engajamento nessas questões. Mas muitas das coisas que nós chamamos de consumo verde só estão deslocando problemas para outro lugar. Entende, não há garantia de que um xampu holístico produzido em pequena escala tenha menos impacto do que um produzido por uma grande corporação.

Existe uma moralidade que favorece o pequeno, dizendo, o pequeno é bom. E não sei se isso se aplica para todos os casos, principalmente se pensamos em emissões de carbono. Outro ponto: como indivíduos, podemos pensar “quero cortar as pegadas de emissão de gases da minha casa”, mas isso significa que eu não devo comer uvas no inverno, ou isso significa que eu não devo comer frutas da Flórida, pensando-se no caso do Centro-oeste dos Estados Unidos. Tudo isso torna a preocupação em torno da emissão de gases uma imensa e complicada questão. Por que devemos distribuir essa questão para 7 bilhões de indivíduos? Todos tentando fazer as suas cabeças, olhando o tempo todo para os impactos e efeitos de seus pequenos atos. E mais: há realmente como ter esse total controle? Há transparência suficiente para isso em termos de processos de produção? É como se houvesse um pensamento único nesse sentido, um tipo que poderíamos classificar como moralismo neoliberal, que quer transformar tudo em responsabilidade individual.

ClimaCom – E os cientistas têm um papel também nisso? Qual seria?

Richard Wilk  –  Nós temos um papel institucional, que se encaixa no que poderíamos chamar de pulga atrás da orelha (gadfly), no sentido de ser algo irritante. Isso porque um pouco do nosso papel em sociedade é justamente ficar cutucando, fazer brotar e questionar. E expor. Entretanto, eu acho que nós utilizamos demais a estratégia da desgraça-e-melancolia. Todos costumam ouvir pessoas da academia soando coisas do tipo “oh, o mundo irá acabar, tudo está errado, o mundo é tão desigual”. Esse tipo de alerta o tempo todo tem outro efeito, que é simplesmente as pessoas se desligarem dessas questões e preocupações depois de um tempo, e com isso, elas se abstêm do processo todo.

Eu penso que a parte da ciência que é a menos desenvolvida é a mais importante, que é justamente a parte na qual os cientistas explicam para o público e se envolvem com o público em torno dos custos e benefícios das diferentes coisas nas quais eles estão trabalhando. E, muitas vezes, alguns cientistas captam isso como se fosse uma premonição, porque eles, de fato, não sabem muito sobre mercado, ou sobre cultura, ou sobre consumo. Eu entendo que os cientistas no mundo de hoje necessitam cada vez mais serem especialistas, porque a expertise se tornou tão profunda que para você dominar a literatura em um pequeno campo é uma tarefa para a vida toda. Mas, ao mesmo tempo, você tem que se manter membro do mundo, como cidadão, e não se esconder nos laboratórios. Ou seja, ler e acompanhar as notícias e pensar sobre a relação entre seu pedaço científico e este dilema que o mundo se encontra.

ClimaCom – Quer dizer que estão envolvidos nesse processo o papel e importância, não só da divulgação científica, mas das ciências humanas?

Richard Wilk  –  Pura curiosidade é uma grande coisa para mover a ciência. Mas ao mesmo tempo, eu penso que nós temos que reconhecer algumas vezes como essa pura curiosidade pode se delongar demais em termos de estratégia. Minha vida inteira,  fiquei esperando pelos carros atômicos que foram prometidos para nós na década de 1950. Ou pela energia abundante e barata que seria produzida pela fusão da água do mar. E os cientistas ficam trabalhando nesses enormes projetos. Por que nós precisamos gastar dinheiro na pesquisa de uma específica parte de um colisor, às vezes cinco mil vezes mais dinheiro do que nós gastamos em ciências sociais? Talvez isso seja aceitável para nós, pelo propósito da pura curiosidade sobre o campo do mundo magnético, ou sobre enviar um satélite de um bilhão de dólares para a órbita.

Ora, tudo bem, mas, ao mesmo tempo, nós estamos tirando o financiamento para as ciências sociais, por exemplo. Nos Estados Unidos, a antropologia recebe menos de 3 milhões de dólares por ano da Fundação Nacional de Ciências, isso é equivalente a um valor irrisório do financiamento da NASA. Eu amo exploração espacial, eu considero isso importante, eu penso que isso se constitui num grande esforço humano. Mas penso que entender as pessoas deveria ser da mesma importância, e não vejo isso acontecer.

 

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ClimaCom – Por fim, uma pergunta específica sobre o Brasil. Recentemente, por conta de um aumento da renda e acesso ao crédito, uma parcela maior da população tem tido mais acesso a bens de consumo (compra de automóveis, celulares, mudança nos hábitos de alimentação etc.). Esse acesso ao consumo, comumente, é associado a uma maior inclusão social, qualidade de vida ou mesmo a acesso à cidadania. Como o senhor avaliaria essa situação?

Richard Wilk  –  Essa é uma questão realmente para se refletir. E se invertêssemos um pouco essa lógica e começarmos a pensar em restringir o consumo? Nós teremos de começar com os altos consumidores e não com os baixos consumidores. E eu penso que esse tem que ser um debate sobre como nós vamos alocar recursos, o que significa que talvez nós precisemos distribuí-los, não de acordo com o quanto de dinheiro você fez. Em outras palavras, o Bolsa Família pode ser visto como algo que diz: todos devem ter esse mínimo padrão de vida. O que ninguém quer pensar é sobre a pergunta que diz: o que seria configurar um máximo de ganhos? Isso soa impraticável e ridículo, mas pensar dessa maneira é um caminho. Pensar diferente sobre a pobreza também pode ser outro caminho. As pessoas pobres não são todas violentas, e não é verdade que elas não tenham seus luxos, seus modos de lidar com a cultura material ou que não tenham ou não possam ter pequenos prazeres. E tem ainda o outro lado do consumo, que é a enorme pressão social para que ele aconteça: nós muitas vezes esquecemos o quão importante é essa pressão para produzir e manter a cultura do consumo.

Nesse sentido, eu sou um tipo de velho hippie, porque nos anos 1960 nós pensávamos que nós poderíamos transformar o sistema mudando nosso consumo, e isso não funcionou. O sistema se mostrou muito resiliente. Ninguém em 1960 previa a internet ou o smartphone, esse tipo de coisa não poderia ser imaginado. E nós já tomamos isso como dado, como algo invisível. Mas há toda uma série de prazeres na cultura do consumo. E a questão é: como nós podemos utilizar de todos esses prazeres de uma maneira sustentável? A sua geração é a que terá de reconhecer os limites de todo esse processo e pensar sobre uma maneira justa de distribuir riquezas e bens que seja melhor do que simplesmente a saída “quem tem mais dinheiro consome mais”.

Eu sou muito interessado em como a cultura de consumo no Brasil difere da cultura de consumo nos Estados Unidos. Nessa entrevista, eu falei a partir de uma perspectiva de quem conhece bem os Estados Unidos e o Caribe Britânico, mas eu gostaria de reforçar que cada cultura de consumo é diferente e envolve as pessoas em diferentes maneiras e existem com diferentes potenciais de transformação.