Previsões de Mundo

Título: Previsões de Mundo


 

Autora:  Janaína Quitério

 

Madame Cristina não me escondeu nada na primeira vez em que a procurei no Solar de Gaia. A voz crispada, que endurecia seus olhos de amêndoas largas, também pôs em riste o corpo errático com o qual eu entrei na casa, cinco minutos depois de ter anotado as informações coladas no poste ao lado de outros cartazes que prometiam salvação material ou de alma. O mundo não acabou só pra você. Venha colher esperanças em Gaia. Avenida 22, Centro.

Na casa coletiva que reunia uma rede de cartomantes, cada qual com visões próprias “pra botar um bocado de sol na alma dos seres da terra”, como Madame acalentava, um mundo à parte sobrevivia: os profissionais do baralho, em número de 20, cuidavam da imensa área verde do terreno, com jardim de frutíferas, horta e viveiro beirando um riacho também imerso em vidas. Lá se achava quase tudo de que necessitava o sustento coletivo, mas, pra arcar com o restante da planetária lista de despesas, o grupo costumava vender previsões e conselhos sobre o tempo humano, suas inundações e securas.

Abrir o portão de ferro da entrada da casa funcionava como campainha. Na tarde em que me vi no interior do espaço, Madame Cristina recolhia lambaris no lago com uma rede improvisada. Fazia trinta anos que eu não me aproximava de qualquer corpo d’água, ressentida que estava, e estanquei no caminho. “Adentre nosso mundo, senhora, nada de acanho”, convidou essa mulher colorida e rotunda que é a Madame. Como eu não sou de rodeios, descarreguei nela as minhas intenções sem as prévias cortesias e apresentações.

A cartomante repassou à parceira de colheita o balde com os peixes que serviriam na janta e me levou à sua área de trabalho – uma mesa de madeira com dois lugares plantada sob a copa amarela e arredondada de uma das árvores do bosque. “Faz três décadas que procuro saber para quais mares remotos meu filho foi levado. Me diga, já que não sou afeita a atalhos, quanto tempo ainda preciso esperar até encontrá-lo?” foram as primeiras palavras que eu lhe disse, assim, decidida, a ponto de acreditar que eu fazia parte da espécie de humanos com comportamento assentado.

Antes de deitar as cartas, Madame Cristina contou que era agregada à rede de observadores que viam o mundo com os olhos do baralho humano, a quem um aprendiz convencionara chamar de tarô antropoceno, em referência a toda a nossa época de escravizar a terra – e a nós próprios. Não me importei em mastigar os seus detalhes metodológicos. Que diferença fazia saber com qual luneta Madame Cristina olharia o que estava no porvir dos meus retorcidos sessenta anos? É possível que ela tenha lido a impaciência nos pormaiores dos meus gestos já que, sem mais esclarecimentos, lançou sobre a mesa a primeira e única carta: O Mundo.

Permanecemos em silêncio a escutar o que os desenhos da carta diziam. Um homem ou mulher – o contorno dos corpos era indefinido – segurava algumas ferramentas, como pá, espátula e martelo, ao lado de um lago ranhento e raso. No Mundo não havia sol, nem verde, nem um mísero raio de luz que brilhasse: era uma carta de cores desconstruídas.

Não ouvi o que a voz de Madame Cristina rascunhou depois de interromper seu suspiro: a carta do baralho já tinha me conduzido pra um tempo que não ruía das ruas desertas da memória. Estava lá meu filho, meu filhinho de cinco anos, na beira do amazônico rio São Benedito nadando ao lado de outras crianças enquanto eu tentava fisgar os peixes das profundezas com meu guia esportivo. Ele mergulhava estabanado, toda criança nada afobada, pra voltar à superfície, orgulhoso do feito, “mamãe, mamãe, olha como sou um peixe!”, “mamãe, contou quanto tempo eu respiro dentro d’água?”, e eu consentia, “claro, os peixes respiram mesmo na água, filho”, “olha só, mamãe, vou mergulhar mais fundo e agarrar o tucunaré pra gente!”. No futuro ainda esperado, meu peixinho trazia de volta o troféu que todo pescador almeja, mas sem machucar o animal, sem feri-lo com um furo que só não seria maior que o rombo que me dilacera até hoje depois que ele não voltou do mergulho nem no segundo seguinte, nem nunca.

Jamais perdoei a natureza. Desperdiço seus recursos. Manipulo-a. Desde então,  reconheço-me na parcela humana que, de forma consciente, descarrega na terra e na água os seus dejetos diários de plásticos, pedras, fumaças, fibras, venenos. Refugiei-me dentro do cinza de um prédio com vistas pro mar de satélites localizado na selva de animais sem guelras a nadarem em concretos sinuosos de cardumes erráticos. Toda manhã, quando leio no jornal as notícias ambientais, sinto-me vingada: “Biosfera sofrerá sua sexta extinção em massa”, “52% dos animais vertebrados desaparecem da Terra em 40 anos”, “Savana é o futuro da Amazônia”. Os mundos, dentro e fora da carta, se emparelhavam. O fim era humano.

– Seu filho mergulhou em rio que transbordava vida. Agora, seca junto com as águas.

Meu peixinho seria extinto, foi o que eu entendi da interpretação de mundo da Cristina, mas só depois de uma dezena de meses, quando voltei ao solar pra me instalar como ajudante. Como ainda sonho em rever meu filho, nem que seja a memória do que ele – e eu – fomos um dia, passo os dias começando de novo esta história, dentro e fora das linhas.