Noemi Favassa | Clarice e o não dizer, gotas de contingência


Noemi Favassa [1]

 

O último som não é o fim da música.

Daniel Barenboim

 

O dizer de Clarice Lispector se constrói na percepção do entendimento do não dizer que repousa no seu existir. O dizer de Clarice diz o “entre”, diz o vinco na dobradura, diz e não diz o todo e as partes. É o confluir fluindo no contínuo processo de ser, é retornar ao retorno.

Dizer o “entre” é estar no silêncio melodioso das notas em “(…) que basta silenciar para enxergar, abaixo de todas as realidades, a única irredutível, a da existência” (LISPECTOR, 1998, p. 22). A melodia revela que jaz na tumultuada quietude do ser aquilo que em si mesmo se procura: o existir.

Podemos perceber que Clarice transmite a mensuração imensurável da existência, seu pensamento nos direciona para a busca da busca incontida, na inquietude silenciosa que gera a própria busca. O existir é ser, um ser mais que ser e um ser que não habita o estar; é a essência silenciosa da busca. Ao contrário do que propõe a racionalidade, Clarice busca o não entendimento de si mesma, ainda que sabedora da necessidade de uma linguagem para a tessitura de seu pensar, discorda de sua eficácia posto que contingente; ainda assim, afirma que a linguagem se faz necessária para o não dizer. Logo, em dizendo o não dizer, o entendimento do não entendimento se constrói.

Outrora disse o filósofo Heráclito de Éfeso:

Na procura de si mesmo emerge um tempo não registrado em calendários, não medido pelo movimento do sol ou dos astros, tempo que se percebe longo ou breve na passagem, tempo de que se desconhece o fim. Indefinido e obscuro como as previsões videntes fundamentam as decisões que movimentam os passos para o que ainda não é. (…) Quem se busca se faz e se desfaz na busca. Não é coisa entre coisas. A busca é do falante e se processa no exercício do discurso que separa, dispõe, elege, religa. Esta busca determina o eu compreendido na marcha, no fluir, na aproximação e no distanciamento dos demais (SCHÜLER, 2000, p.173).

Em Heráclito e Clarice, podemos perceber que há o entendimento da atemporalidade que subjaz ao tempo cronológico. A classificação temporal que a exterioridade compôs como presente, passado e futuro, concretizam o mundo, mas não o pensar. No pensamento do existir somente há o “sendo”, um processo contínuo, fluido e fragmentado em sua inteireza. O existir situa-se paradoxalmente no constante devir. Em face disso, podemos pensar que a infinitude que forma o existir finita-se no estar; causa e angústia de toda busca humana.

É no “entre” da infinitude e da finitude do ser, que emerge em Clarice o limiar do abismo, este que, segundo Beigui (2006, p.3), “é sempre o ponto de partida para a dúvida e a dispersão”. Neste sentido, a dúvida é a incerteza sobre a realidade — nada há que nos comprove a veracidade do real e, no entanto, há o sempre questionante. Ao passo que, na dispersão, o homem separa-se de si mesmo e estabelece a dualidade ser-estar.

No existir, o movimento abissal representa a imagem da beira no abismo, o limiar para a queda no real, o portal do existir, significando aquilo que ainda não é e nunca será real, logo, permanecemos na suspensão “entre” o ser e o estar. O filósofo Martin Heidegger diz que há um movimento abissal que perfaz o movimento do desvelar-se e esconder-se, e que não há alcance na apreensão do ser, o ser se mostra e se vela num único movimento, o que diz o mundo e se cala, o movimento do dizer.

Em Perto do coração selvagem, afirma Clarice (1998 p. 21-22):

(…) Perco a consciência, mas não importa, encontro a maior serenidade na alucinação. É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer, porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto, se transforma lentamente no que eu digo. Ou pelo menos o que me faz agir não é o que sinto mais o que eu digo. (…) Mas basta silenciar para só enxergar, abaixo de todas as realidades, a única irredutível, a da existência (…).

Em A paixão segundo GH (1964, p. 172), o pensamento clariciano expressa que, “(…) a linguagem é o meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias. Mas volto com o indizível. O indizível só me poderá ser dado através do fracasso da minha linguagem”. A incompletude da linguagem coloca Clarice no mundo do questionamento, aquele que nada explica, mas que implora, a si mesmo, uma reposta irrespondível do mundo, fazendo com que surja da profundidade do ser a angustiante dúvida desveladora da existência.

Consoante ao pensamento clariciano, diz o filósofo Heidegger (2003, p. 135):

Que questionar não é o único gesto do pensamento. Pensar é também escutar o consentimento daquilo que deve tornar-se uma questão. (…) Um pensamento é tanto mais pensamento quanto mais radicalmente se gesta e se faz gesto, quanto mais chega à raiz, à raiz de tudo aquilo que é. A pergunta do pensamento permanece sendo sempre a pergunta pelos fundamentos primeiros e últimos. Por quê? Porque o fato de que algo é e o que algo é, porque o vigor da essência foi há muito tempo definido como fundamento. Se toda essência tem o caráter de fundamento, a busca pela essência apresenta-se como uma fundamentação e uma fundamentação do fundamento. O pensamento que pensa a essência nesse sentido é em seu fundamento um questionar.

Podemos perceber o nexo existencial entre os pensamentos de Heráclito — quem se busca se faz e se desfaz na busca -, de Clarice — mas basta silenciar para só enxergar, abaixo de todas as realidades, a única irredutível, a da existência; e de Martin Heidegger — O pensamento que pensa a essência nesse sentido é em seu fundamento um questionar.

De forma que só podemos falar em busca, em linguagem e em existência, quando nos deparamos com o mundo em contingência. Esta é pedra de toque da fragilidade humana, ser o reflexo do que o mundo nos mostra. Erige-se então o abismo, algo que nos coloca numa pseudo-imobilidade ou o espanto perante o mundo e perante nós mesmos.

A tensão ser-estar esboça um conflito interminável para Clarice, como nos mostra Curi (2001, p. 86):

(…) Todo corpo é matéria e é finito, e sua essência é sua potência de agenciar; os corpos precisam entrar em relações, efetuando-se na troca de potências e estabelecendo a partir daí o mundo que lhe permite ser e devir. Não há corpo que não seja em relação e, a cada vez, a relação é a realidade.

Paralelo às palavras de Curi, ressaltamos o aforismo §121, de A Gaia Ciência (1978, p. 202), quando Nietzsche diz:

A vida não é um argumento. Armamos para nós um mundo, em que podemos viver — ao admitirmos corpos, linhas, superfícies, causas e efeitos, movimento e repouso, forma e conteúdo: sem esses artigos de fé ninguém agora vive! Mas como isso ainda não é nada de demonstrado. A vida não é um argumento; entre as condições da vida poderia estar o erro.

Não há argumento que dê significância ao existir, ao ser. O mundo se mostra normatizado, fragmentado e aparente, refletindo sua pobreza, pois nada há de verdadeiro, não obstante se realize como real. O real é concreto, endurecido e empobrecido por valores menores, haja vista necessitar alcançar o todo social para então se traduzir como um valor; e ainda se pressupõe que esse valor individual, possa ser disseminado ao outro.

A singularidade in-copiável de cada ser é, em si mesma, a magnanimidade do existir, mesmo através da angústia, do não entendimento, da falha da linguagem pelo não alcance das representações do pensamento. Sim, mesmo assim, o singular se compõe e se decompõe em sua busca, se perde e se encontra e se pertence pelo não pertencimento de si mesmo, embora, isto não signifique um desvalor, mas, um valor intrínseco a cada ser, como explicita o professor a Joana (LISPECTOR, 1998, p. 21-22): “- Não é valer mais para os outros, em relação ao humano ideal. É valer mais dentro de si mesmo…”.

O desvalor corresponde ao que vivenciamos na realidade, no niilismo social, na mediocridade das normas que esfacelam a singularidade, ao ciclo do ser-nada, da invisibilidade a que a sociedade nos submete, motivo pelo qual nos estranhamos com o ser no mundo, e iniciamos de forma contundente um retorno a si mesmo, como nos fala Nietzsche, e que podemos aclarar da seguinte forma: no mundo, a mesmice do estar; e no ser, a transcendência do mundo; o retorno ao sentido do sem sentido do existir, a busca do entendimento de si mesmo, ou ainda, no pensamento clariciano, uma busca por alagar-se continuamente pelo não entendimento.

O alargamento do ser pelo seu não entendimento pode ser comparado a uma ponte, que suspensa sobre o abismo demonstra o habitar inconstante de nós mesmos. Somos embalados pelo vento da vida, levados ao sabor de todos os desejos, angústias, incompreensões, estranhamentos e não pertencimentos; porém, construímos a margem da qual saímos para a travessia da ponte, e na outra margem, a completude do ser tentaremos alcançar. As margens somente repousam uma frente à outra e jamais se alcançarão. As margens, como extremos da vida, ordenam atemporalmente sua própria ordem.

No retorno a si mesmo, Clarice evidencia sua imanência e transcendência, ou seja, a experiência possível em si mesma e que a si mesma transcende, e para tanto, é necessário o afastamento do mundo em que se perpetua a lacuna, o nada. Podemos pensar que Clarice diria: em suspenso a vida se perpetua!

Na inquietude do existir, nos conta a história da filosofia em todas as suas épocas, que a via que nos conduz é tão somente a busca contínua por algo que quiçá alcançaremos, não obstante o que de fato importa, é que o caminho da busca seja o seu próprio caminhar.

Pensar Clarice Lispector é dizer o indizível, é mostrar a realização do não alcance inerente ao ser, é entender que o devir nos faz eternamente o momento contínuo de nós mesmos. É estar em silêncio!

Uma reflexão interessante sobre o silêncio é descrita pelo maestro Daniel Barenboim explicando o habitar do som no silêncio, diz ele:

O som não permanece neste mundo; evapora-se no silêncio. O som não é independente — não existe por si só, antes tem uma relação permanente, constante e inevitável com o silêncio. […]. O último som não é o fim da música. Se a primeira nota está relacionada com o silêncio que a precede, então a última tem de estar relacionada com o silêncio que lhe sucede. […] Um dos modos de preparar o silêncio é criando a precedê-lo uma enorme quantidade de tensão, para que o silêncio só aconteça depois de ter sido atingido o máximo absoluto de intensidade (BARENBOIM, 2009, p. 15,17).

 

Podemos pensar o som descrito pelo maestro analogamente ao sentido que Clarice nos mostra o existir; a tensão no existir prepara o silêncio que silencia a alma, pois não permite a tradução em palavras, intensifica o existir impedindo o dizer de se revelar.

O nexo do existir-clariciano está na melodia do existir que surge na vibração das cordas do mundo. Há o ser que é e o ser que se pretende entendimento, o ser que se cala e que se vela num desvelar do próprio pertencimento.

Se o último som não é o fim da música, como diz o maestro; a última matriz não é o fim de uma tela, a última moldagem não é o fim da escultura, o último questionamento não é o fim da dúvida; o último de tudo em tudo é apenas nomeado último.

A última palavra não é o fim do dizer…

E Clarice, silencia!

 

Bibliografia

BARENBOIM, D. Está tudo ligado — o poder da música. Trad. Francisco Agarrez. Ed. Bizânico, Lisboa, 2009.

BEIGUI, Alex. A teatralidade em Clarice Lispector. In: Dramaturgia por outras vias: a apropriação como matriz estética do teatro contemporâneo – do texto literário à encenação. Tese de Doutorado. USP, São Paulo, 2006.

BERGSON, H. O pensamento e o movente: ensaios e conferências. Tradução de Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

BLANCHOT, M. O encontro do imaginário. In: O livro do porvir. Trad. Leyla Perone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

CURI, S. R. C. A escrita nômade em Clarice Lispector. Chapecó: Argos, 2001.

HEIDEGGER, M. A caminho da linguagem. Trad. Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2003.

LISPECTOR, C. A paixão segundo GH. Rio de Janeiro: Rocco, 1964.

_________. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

NIETZSCHE. F. A Gaia ciência. (Coleção os Pensadores) São Paulo: Abril cultural, 1978. 2ª ed.

NUNES, B. O drama da linguagem: uma leitura de Clarice Lispector. São Paulo: Ática, 1989.

ROSENBA, M. Y.. “No Território das Pulsões”. In: Clarice Lispector, Cadernos de Literatura Brasileira. Instituto Moreira Salles. Rio de Janeiro, IMS, 2004.

SCHÜLER, D. Heráclito e seu (dis)curso. Porto Alegre: L&PM, 2000.

 

Recebido em: 28/06/2019

Aceito em: 28/07/2019

 


[1] Doutora em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Email: noemifavassa@hotmail.com

 

Clarice e o não dizer, gotas de contingência

 

RESUMO: Encontramos no pensamento de Clarice Lispector gotas de contingência, ou seja, há em sua narrativa o entendimento do inalcance que a linguagem possui para com a construção do real que se lhe escapa, permanecendo no silencio do ser. O dizer em Clarice é dizer o “entre”, é dizer a dobra na dobradura, é dizer e não dizer o todo e as partes. É confluir fluindo no contínuo processo de ser, é retornar ao retorno. É estar no silêncio clariciano (...) Mas é que basta silenciar para enxergar, abaixo de todas as realidades, a única irredutível, a da existência”. Na tumultuada quietude do ser, eis que jaz aquilo que em si mesmo se procura: o existir. 

PALAVRAS-CHAVE: Existência. Dizer. Quietude.

 


Clarice y el no decir, gotas de contingencia
RESUMEN: Encontramos en el pensamiento de Clarice Lispector gotas de contingencia, es decir, hay en su narrativa la comprensión de lo inalcanzable que el lenguaje tiene para con la construcción de lo real que se le escapa, permaneciendo en el silencio del ser. El decir en Clarice es decir el “entre”, es decir el pliegue en el plegado, es decir y no decir el todo y las partes. Es confluir fluyendo en el continuo proceso de ser, es regresar al regreso. Es estar en el silencio clariciano “(…) Pero es que basta con silenciar para ver, debajo de todas las realidades, la única irreducible, la de la existencia“. En la tumultuosa quietud del ser, es que yace lo que se busca en sí mismo: el existir.

PALABRAS CLAVE: Existencia. Decir. Quietud.

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FAVASSA, Noemi. Clarice e o não dizer, gotas de contingência. ClimaCom – A Linguagem da Contingência [Online], Campinas, ano 6,  n. 15,  Ago.  2019 . Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/clarice-e-o-na…contingencia-2/