Iasmin Alves, Mara Luiza Chacon e Pedro Lucas Bezerra | A serpente e a mulher limpa: os discursos em profusão na poesia de Angélica Freitas


Iasmin Correia Alves [1]

Maria Luiza Assunção Chacon [2]

Pedro Lucas de Lima Freire Bezerra [3]

 

Em um texto publicado na Folha de São Paulo de 14 de abril de 2019, a escritora e doutora em literatura portuguesa pela USP Mariella Augusta Masagão vaticinou que a poesia brasileira ficou “sisuda e hermética”, permeada por cenas cotidianas que são “atravessadas por cores, ângulos e memórias que assinalam, muitas vezes, confusão e suscetibilidade”. O efeito causado por essa tendência, segundo a escritora, torna a poesia brasileira no geral burocrática: “Essas preferências fizeram da poesia brasileira ou uma tribuna cujo sentido é defender causas justas ou uma sensação doméstica tornada estranha, raramente cômica, que deseja democratizar o sublime”. Essa democratização do sublime viria disfarçada de humor ou ironia, com os quais solicitações de “causas justas” e “moralizantes” se disfarçam sob uma redoma de hermetismo que, para a escritora, não se sustenta. Um exemplo desse canhestro hermetismo, para Masagão, é a poesia da poeta gaúcha Angélica Freitas, “engajada e moralizante, não tem qualquer hermetismo e se comporta dentro de uma linguagem denotativa”. 

Não é a primeira vez que a poeta gaúcha sofre ataques de críticos por sua poesia que é construída em uma “linguagem denotativa” (sic Mariella Augusta Masagão, 2019). Em 2014, o crítico Amador Ribeiro Neto sentenciava que a poesia de Angélica Freitas “Acha que faz intertextualidade com finalidade poética. Acha que é dona de um estilo. Acha que faz poesia com os clichês do cotidiano”. Em insistentes argumentos em torno do ritmo prosaico do livro Um útero é do tamanho de um punho (2012), o crítico chega a dizer que Angélica “não consegue criar”, em alusão à orelha do livro, escrita pelo poeta carioca Carlito Azevedo, que diz logo em sua primeira frase que “Angélica consegue criar”. A leitura de Amador Ribeiro Neto, que gerou controvérsia no período, com críticos se posicionando a favor de Freitas e outros a favor da crítica de Ribeiro Neto, denota alguma estranheza que se anuncia na poesia da escritora gaúcha. O que o crítico determinou como “clichês do cotidiano”, a falha “intertextualidade com finalidade poética”, e a coloquialidade acima de tudo são as marcas de uma poesia que procura um ambiente excessivamente contemporâneo, buscando a paródia e a interseção entre o riso e a seriedade de discussões a nível gregário de seu tempo. 

Apesar dessa fortuna ingrata, não é só por críticas desfavoráveis que a obra de Angélica Freitas é colocada em debate. Já há uma quantidade considerável de estudos, monografias, dissertações e teses sobre sua poética. Lida como uma poeta do cotidiano, com o sarcasmo e ironia peculiares da contemporaneidade, Angélica Freitas tem sido tema desde ensaios críticos de fôlego [4]  ou até mesmo parcerias/homenagens musicais, como a recente transposição de poemas para o formato de canção empreendida pelo músico também gaúcho Vitor Ramil [5]. A recepção de sua poesia também é visível, pois, em um público maior: a primeira edição de Rilke Shake, publicado em parceria entre as editoras 7 Letras e Cosac Naify, já se encontra esgotada e Um útero é do tamanho de um punho já está em sua segunda edição, já que a primeira edição compunha o catálogo da extinta editora Cosac Naify. A casa editorial que abriga hoje a obra de Angélica é a paulista Companhia das Letras, que reeditou seu segundo conjunto de poemas. Além de êxito em crítica e público, o segundo livro da poeta foi também considerado pelo Segundo Caderno de O Globo um dos melhores livros publicados no país em 2012, sendo finalista na categoria Poesia do Prêmio Portugal Telecom 2013. 

Embora colocada em xeque, Angélica Freitas é representante de uma corrente poética brasileira estritamente atual, afetada pelas leituras de poetas da geração dita Marginal (representada pela coletânea 26 poetas hoje, de Heloísa Buarque de Hollanda) e com uma dicção poética visivelmente herdada de Drummond e Bandeira. As relações estabelecidas na poética de Freitas são ainda efeitos de seu tempo, onde questões feministas, tensões do social e do urbano e a linguagem rápida da Internet confluem numa polifonia sutil e contundente.  

A construção de Um útero é do tamanho de um punho (2012) está fundamentada no livre jogo entre discursos, vozes e recursos contemporâneos, onde a mulher está no centro de tudo, em uma geografia íntima e coletiva ao mesmo tempo. Todavia, há uma questão que se inscreve já na afirmação sobre a temática feminina nessa obra: de que mulher Angélica Freitas fala? A mulher no discurso, a mulher que se inscreve na literatura por meio de uma contingência de imagens e relações sócio-culturais, mas que pode ser reconstruída e reformulada usando os próprios dispositivos que a estabelecem, a limitam e a constroem. Para a professora da Universidade da Virgínia e crítica literária Rita Felski, estudiosa da literatura pela chave da teoria feminista, “literature does not only refer to itself, or to the workings of metaphor or metonymy, but is deeply embedded within existing social relations, revealing the workings of patriarchal ideology through its representation of gender and male-female relations” (FELSKI, 1989, p.29) [6].

Essa fresta por onde a literatura reflete questões intrínsecas ao masculino e feminino é por demais importante para se construir uma chave de leitura para a poesia de Angélica Freitas. O que há de mimético e imagético em sua poesia em muito se devota às construções de gênero, espaço onde a poeta tenta apontar uma linha de fuga. 

O livro Um útero é do tamanho de um punho é subdividido em partes – “uma mulher limpa”, “mulher de”, “a mulher é uma construção”, “um útero é do tamanho de um punho”, “3 poemas com o auxílio do google”, “argentina” e “o livro rosa do coração dos trouxas”. Na primeira parte da obra, veremos que virá à tona, não sem ironia, o ideal de uma “mulher limpa”, conforme é possível verificarmos no poema que abre o livro: 

 

porque uma mulher boa 

é uma mulher limpa  

e se ela é uma mulher limpa 

ela é uma mulher boa 

 

há milhões, milhões de anos 

pôs-se sobre duas patas 

a mulher era braba e suja 

braba e suja e ladrava 

 

porque uma mulher braba 

não é uma mulher boa 

e uma mulher boa 

é uma mulher limpa 

 

há milhões, milhões de anos 

pôs-se sobre duas patas 

não ladra mais, é mansa 

é mansa e boa e limpa (FREITAS, 2012, p. 11). 

A mulher limpa, desse modo, designa a mulher que é como deve ser: civilizada, dócil e, por isso, exemplarmente boa. Como sabemos, esse discurso em si não resguarda nenhuma novidade: reproduz em grande medida o discurso patriarcal e dominante de nossa sociedade, que apregoa a passividade e subserviência como sendo características primordiais da mulher. 

O ritmo do poema é de uma simplicidade próxima ao infantil, e logo ao final da primeira estrofe esbarramos na tautologia “e se ela é uma mulher limpa/ ela é uma mulher boa”. A linguagem utilizada para idealizar a mulher é pragmática, funciona quase como uma fórmula pronta e totalizante, um manual de deveres que a mulher deve cumprir. Esse ritmo corriqueiro do poema de Angélica Freitas, longe de encerrar o poema sob essa aparência, parece agir de modo a reforçar o seu tom mais irônico, além de fazer pensar sobre a questão da seriedade do discurso poético. Como poderia estar circunscrito ao discurso poético um poema cujo tom é aparentemente tão banal? É um poema se não tem pompas? A nosso ver, é justamente essa simplicidade e repetição presentes nos versos de Angélica Freitas em Um útero é do tamanho de um punho que despontam como potência criadora.  

No poema que se inicia com “uma mulher gorda/ incomoda muita gente/ uma mulher gorda e bêbada/ incomoda muito mais/ uma mulher gorda/ é uma mulher suja/ uma mulher suja/ incomoda incomoda/ muito mais” (FREITAS, 2012, p. 16) também é possível verificar a utilização dos joguetes infantis: a poeta produz intertextualidade a partir da parlenda “um elefante incomoda muita gente”, a fim de ironizar o ideal de feminilidade do patriarcado. 

Que seria, então, a mulher selvagem, além de braba e suja? Por certo seria a mulher ingovernável, que escolhe ser a autora de sua própria sorte e viver a vida como ela é: cheia de vieses e de contingência. Não é essa, contudo, a mulher que a poeta traz como heroína do segundo poema do livro, mas sim “uma mulher muito feia/ extremamente limpa / que levou por muitos anos / uma vida sem eventos” (FREITAS, 2012, p. 12). A mulher limpa e boa é também aquela que aceita de bom grado a sua própria imobilidade e em cuja realidade nada acontece. Justamente por levar por tanto tempo uma vida sem movimento, ironicamente é ela a heroína do poema. 

O poema “uma canção popular (séc. XIX-XX)”, trata da mulher suja, selvagem, a mulher que ladra ou, dito de outro modo, a mulher histérica, que grita sem que haja motivo, a mulher que causa problemas à ordem: 

uma canção popular (séc. XIX-XX): 

uma mulher incomoda 

é interditada 

levada para o depósito 

das mulheres que incomodam 

 

loucas louquinhas 

tantãs da cabeça 

ataduras banhos frios 

descargas elétricas 

 

são porcas permanentes 

mas como descobrem os maridos 

enriquecidos subitamente 

as porcas loucas trancafiadas 

são muito convenientes 

interna, enterra (FREITAS, 2012, p. 15). 

Da histeria, dizia-se até meados do século XX que era considerada um distúrbio médico comum entre as mulheres. Historicamente, o lugar voltado às mulheres consideradas histéricas eram os asilos, os manicômios e até as fogueiras. Em um ritmo repetitivo que traz à tona realmente o soar de uma canção, o poema de Angélica Freitas nos remete aos séculos presentes em seu título, nos quais as mulheres consideradas desvirtuadas ou problemáticas eram minadas do convívio social. No poema, o manicômio figura como o “depósito das mulheres que incomodam” (FREITAS, 2012, p. 15). As mulheres que extrapolam o ideal de feminilidade apregoado em uma sociedade patriarcal e misógina, sejam por suas ideias e/ou por sua aparência física, é que são as “porcas permanentes” de que fala o poema, e essas mulheres trancafiadas são convenientes aos maridos que descobrem que só tem a ganhar com essa clausura. Afinal, sem as mulheres que intentam contra a ordem estabelecida pela sociedade, sem alteração em suas estruturas de poder: ou seja, sem essas mulheres, sem mudanças. Ao final do poema, o verso “interna, enterra” sugere o que resta ao ser que ameaça abalar as ordens. 

Ao carregar consigo as marcas de identidade (lésbica, mulher, brasileira, etc.) é comum aos críticos de Freitas, também a outros que veem esse perfil em escritoras distintas, estagnarem sua obra na prateleira das “causas justas” que precisam, como ânsia de nossos tempos, ser defendidas. 

Mas como afirma Camila von Holdefer a Juliana Domingos de Lima, há também outra força na identificação literária: 

Alguns acham — e têm razão — que não se pode reduzir uma narrativa ao fato de abordar a vivência lésbica, como se não houvesse nenhuma outra característica a ser levada em conta. A literatura, a universal, aquela que não precisa de um complemento ao termo, ainda seria heterossexual, e a literatura lésbica seria, portanto, uma subliteratura. Apenas um nicho, nada mais. É por isso que o rótulo pode ser perigoso. […] No entanto, o que pode soar contraditório, a classificação ainda me parece importante em alguns casos, desde que se tenha em mente que é apenas um ponto de partida […] (HOLDEFER apud DE LIMA, 2019). 

Assim, o que os críticos que partem desse ponto ignoram ou parecem não tratar do assunto com o verdadeiro rigor que deveria ser tocado – e aqui podemos ver mais uma vez o texto escrito por Mariella Augusta na Folha de São Paulo, quando ela fala que a escritora gaúcha é “engajada e moralizante” -, é a potência ambivalente que esses lugares comportam: ao mesmo tempo em que a poesia fala apenas a um grupo específico, ao grupo de mulheres, grupo de lésbicas, e permanece limitada a uma direção, ela também impulsiona essa literatura que ao longo da história foi negligenciada em nome do cânone. Como escreveu Tatiana Pequeno em uma matéria publicada na Revista Cult:  

[…] sempre fomos ensinadas a amar o cânone sem necessariamente participar dele em nenhum aspecto, senão através da nossa “humanidade”, o que sabemos ser belo, sim, mas generalizante e, muitas vezes, totalitário porque força de lei, como lembra Derrida (PEQUENO, 2016). 

Então, para termos acesso à poesia de Angélica, precisamos caminhar por pontos pregressos da própria construção do gênero a que ela se debruçará. Para Glória Anzaldúa, responsável por descentralizar os estudos feministas nos Estados Unidos em finais dos anos 70, dando voz às mulheres de cor, às lésbicas, judias e mulheres do Terceiro Mundo, há um desvio na imagem da mulher mestiça (mestiza) que a estigmatiza de modo diferente de uma mulher “comum” (ou seja, aquela que não está nos pontos da diferença, marcadamente que seja branca, heterossexual, ocidental, etc.). Colocando-se em perspectiva, falando por um coletivo da qual faz parte, Anzaldúa assume a diferença racial propagada para a mulher mestiça, que a folclorizam como “la primera raza sínteses del globo[7] . Tratada como um verdadeiro alien, a mulher mestiça possui uma consciência diferente das outras: essa consciência é a consciência das Fronteiras, o que a faz procurar rotas que diferem das culturas dominantes, indo além dos limites estabelecidos por seu próprio dominador: 

These numerous possibilities leave la mestiza floundering in uncharted seas. In perceiving conflicting information and points of view, she is subjected to a swamping of her psychological borders. She has discovered that she can’t hold concepts or ideas in rigid boundaries. The borders and walls that are supposed to keep the undesirable ideas out are entrenched habits and patterns of behavior; these habits and patterns are the enemy within. Rigidity means death. Only by remaining flexible is she able to stretch the psyche horizontally and vertically. La mestiza constantly has to shift out of habitual formations; from convergent thinking, analytical resoning that tends to use rationality to move toward a single goal, to divergente thinking, characterized by movement away from set patterns and goals and toward a more whole perspective, one that includes rather than excludes (ANZALDÚA, 1997, p. 235) [8]

As ideias indesejáveis professadas pela mulher mestiça dão margem ao contraditório, ao ambíguo. Como Anzaldúa diz: “to be an Indian in Mexican Culture, to be Mexican from an Anglo point of view” (ANZALDÚA, 1997, p. 235) [9]. Jogando com as possibilidades além-fronteira, a mulher mestiça se conecta com uma cultura plural e marginal, não rejeitando nada, não abandonando nada. É como se ocorresse um confronto de todos os limites, onde o não-limite se estabelece. A fluidez que ocupa outras ilhas da consciência está relacionada a uma fragmentação do próprio pensamento e da existência, fora de ritos estabelecidos e estabilizados por uma cultura eurocêntrica, predominante.

Para Anzaldúa, a mestiça, poeticamente, é aquela que salta no escuro e sobe nos joelhos dos deuses: “We are the people who leap in the dark, we are the people on the knees of the gods” (ANZALDÚA, 1997, p. 237) [10]. É aqui que Anzaldúa e Freitas parecem se encontrar: para ambas, há uma subjetividade poderosa nas fronteiras, na própria condição motriz de ver-se enquanto mulher (para a poeta gaúcha, em poemas como A mulher limpa Uma serpente com a boca cheia de colgate, a mulher cotidiana parece alcançar algum aspecto simbólico e mítico, ou sobe nos joelhos da divindade, mesmo em seus momentos mais prosaicos). Essa potencialidade quase mística que Anzaldúa professa atende também ao chamado de uma presença que prescinde da classificação racional. É preciso acessar uma “presença” que não esteja no regime de significações que atendam a padrões estabelecidos.  

O filósofo alemão Hans Ulrich Gumbrecht defende o emprego do termo Stimmung e seu significado de “presença”, “ambiente”, “atmosfera”, ou uma gama de relações que retratam os efeitos literários para que se produza uma crítica literária que se introduza e centralize nos textos a que se debruça. Para Gumbrecht, a atmosfera e os ambientes incluem as dimensões físicas dos fenômenos, cujas formas de articulação são responsáveis pelos efeitos da experiência estética. Os efeitos de presença ocorrem, pois, como um tom, uma ambiência, uma forma de experienciar o estar-no-mundo: 

Na relação que mantemos com as coisas-no-mundo (e isso é uma consequência do processo de modernização), consideramos a interpretação – a atribuição de sentido – um processo da maior importância. Por oposição, eu gostaria de sublinhar que as coisas estão “sempre-já” – e simultaneamente ao nosso hábito irrefletido de atribuir significações a respeito do que as coisas supostamente implicam – numa relação necessária com os nossos corpos. A essa relação chamo “presença”. Podemos tocar os objetos ou não. Os objetos, por seu turno, podem nos tocar (ou não), e podem ser experimentados como coisas que se impõem ou como coisas inconsequentes (GUMBRETCH, 2014, p. 16). 

A “presença” a que Gumbrecht se refere sustenta o acontecimento estético para além dos naturais “efeitos de sentido” que estamos acostumados a registrar. O efeito de presença concerne à aparição de “atmosferas e climas”, como uma espécie de acontecimento que abala nosso estado de ser-no-mundo. Para estabelecer essa concepção de “presença”, Gumbrecht se vale do uso do termo em alemão Stimmung, de difícil tradução mas que, desmembrada, advém de Stimme ou Stimmen, que significam, respectivamente “voz” e “afinar um instrumento”. O Stimmung seria o compósito de um ambiente de escuta para que melhor se compreenda o som, para distingui-lo, por fim, do ruído.  

Essa concepção de afinação, de um arranjo para voz, em muito se conecta à construção de um ambiente de fruição poética. A poesia gera no leitor, geralmente, mais um efeito de presença que um efeito de sentido: os sentidos se expandem e são pouco estruturados, pouco valem enquanto expressão sígnica e semântica. A presença gerada pelo elemento poético, no entanto, parece estar em comunhão com nossos corpos, ao nosso redor, ao alcance de nossas mãos. O escritor argentino Julio Cortázar dizia que “A literatura vai apoderando-se paulatinamente das coisas e de certa forma as subtrai, roubando-as ao mundo” (CORTÁZAR, 1993, p. 61). Essa subtração das coisas do mundo produz uma substituição, ademais: a coisa roubada vira então uma oferenda, uma coisa nova e presente, que vai além da sua mera significação e torna-se, por si só, um objeto revigorado do real. Para Gumbrecht, “Aquilo que não é linguagem é o que chamo de ‘presença’” (GUMBRECHT, 2009, p 11). 

As palavras agem, aqui, como se substituíssem as coisas, não referenciando, indicando, apontando ou elucubrando a coisa em si. É uma condição expressa de estar no mundo, potencializando a experiência do real (ou seja, expandindo-o ou refletindo seu caráter gregário). O mundo reconstituído, como se abandonado para dar luz a um novo, têm lugar no epicentro do objeto poético. É o caso da poesia de Angélica Freitas: embora cause estranheza ao leitor que procure (apenas) uma poesia empertigada da casualidade de um Drummond ou Bandeira, há ali também a consolação de uma poética cotidiana, onde o lugar-comum, a urgência da vida contemporânea e a profunda relação com sua identidade (fragmentada, cambiante). Esse mundo que parece a nós familiar ou particular na verdade reivindica sua “presença” fora da linguagem. Quando procura recuperar a linguagem do Google, quando procura a imagem de uma “mulher limpa”, um modo de estar-no-mundo, fora dos sistemas de significações referenciais, se abre dentro da poesia de Freitas.  

A procura por uma identidade reivindicada nas fronteiras, em “mares revoltos” (como se refere Anzaldúa), atravessa um mundo particular, embora fragmentado e difícil de ser capturado. A imagem cotidiana de mulher-comum se confunde com uma imagem complexa, distanciada, da mulher contemporânea diante de sua própria estranheza, de sua mestiçagem: 

 

tomo café 

vou ao banheiro 

me olho no espelho 

tomo mais café 

vou ao banheiro 

me olho no espelho 

escovo os dentes 

meto colgate 

na boca 

diariamente 

tomo café 

tomo mais café 

me olho no espelho 

34 quase 35  

é uma senhora  

bonjour madame 

é uma serpente 

sssssssss 

com a boca cheia de colgate 

(FREITAS, 2012, p. 47 – 49). 

Esse poema, intitulado Uma serpente com a boca cheia de colgate, recolhe coisas do mundo e as transformam em elementos de um jogo sem regras definidas. Angélica Freitas se vale da linguagem do cotidiano para dar a essa mulher passando dos trinta anos um caráter metamórfico que busca a não-linguagem, procura as vias de um estado de presença que rompa com os regimes de representação. 

O programa poético de Angélica Freitas persegue as vozes do cotidiano e as reconfigura num chamado para um jogo entre o humor e a crítica. Enquanto manipula os fios que conformam a representação, por trás da ribalta a poeta procura encetar sua voz singular em meio à partilha do comum (quando recolhe discursos e cenas do cotidiano e se coloca em primeira pessoa, quando experimenta com a escrita não-criativa [11] mas produz um arranjo poético particular). Vergando dessa maneira o regime dos sentidos, Freitas estrutura seu vocabulário poético entre o político e o contingente, rastreando novos rumos e expandido seu horizonte sensível.  

 

Bibliografia

CORTÁZAR, Julio. Valise de cronópio. São Paulo: Perspectiva, 1993. 

DE LIMA, Juliana Domingos. O rótulo literatura lésbica impulsiona ou limita as obras? Nexo Jornal, 2019. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2019/06/30/O-rótulo-literatura-lésbica-impulsiona-ou-limita-as-obras> (Acesso em: 08/07/2019). 

FREITAS, Angélica. Um útero é do tamanho de um punhoSão Paulo: Cosac Naify, 2012.  

GUMBRETCH, Hans Ulrich. A presença realizada na linguagem: com atenção especial para a presença do passado. História da Historiografia, Ouro Preto, n. 3, p. 10-22, 2009. Disponível em: <https://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/[Quebra da Disposição de Texto]article/view/68>. Acesso em: 09 de jul. de 2019. 

___________. Atmosfera, ambiência, Stimmung: sobre um potencial oculto da literatura. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014. 

MASAGÃO, Mariella Augusta. Poesia brasileira ficou sisuda e hermética, diz pesquisadora. Folha de São Paulo, 2019. Disponível em: <https://www1.folha[Quebra da Disposição de Texto].uol.com.br/ilustrissima/2019/04/poesia-brasileira-ficou-sisuda-e-hermetica-diz-pesquisadora.shtml>. Acesso em: 05 de jul. de 2019. 

NETO, Amador Ribeiro. Angélica FreitasAugusta Poesia, 2014. Disponível em: <https://augustapoesia.wordpress.com/page/16/>. Acesso em: 05 de jul. de 2019. 

PEQUENO, Tatiana. Poesia lésbica escrita por mulheres: dupla marca de subjetividade contra o rochedo da inexistência. Revista CultDisponível em: <https://revistacult.uol.com.br/home/indiciar-duplamente-o-silencio-mulher-lesbiandade-e-poesia/>. Acesso em: 08 de jul. de 2019. 

VILLA FORTE, Leonardo. O autor como apropriadorSerrote, São Paulo, n. 23, 2016.  

 

Recebido em: 28/06/2019

Aceito em: 28/07/2019

 


[1] Bacharela em Filosofia pela UFRN. E-mail: aciasmin@gmail.com

[2] Doutoranda em Literatura Comparada pela UFRN. E-mail: mluizachacon@gmail.com

[3] Doutorando em Literatura Comparada pela UFRN. E-mail: pedrolucasfbezerra@gmail.com

[4]  O poeta Ricardo Domeneck dedica uma retrospectiva à releitura de Rilke Shake, livro de estreia da poeta, no seguinte endereço: <http://ricardo-domeneck.blogspot.com/2011/02/alguns-poemas-memoraveis-da-ultima_13.html>

[5] O músico gaúcho Vitor Ramil, conterrâneo de Angélica Freitas, ambos oriundos da cidade de Pelotas, musicou poemas de Rilke Shake e Um útero é do tamanho de um punho em seu novo show “Avenida Angélica”. “Vitor Ramil se desloca do pampa para a metrópole paulista, com blues e samba” (SPERB, Folha de São Paulo, 15 de jul. de 2019). Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/07/vitor-ramil-se-desloca-do-pampa-para-a-metropole-paulista-com-blues-e-samba.shtml>. Acesso em: 01 de ago. de 2019

[6] “A literatura não se refere apenas a si própria, ou ao uso de metáforas e metonímias, mas está profundamente engastada com as relações sociais vigentes, revelando os funcionamentos ideológicos do patriarcado por meio de suas representações de gênero e das relações masculino-feminino” (tradução nossa)

[7]A citação é oriunda da própria Anzaldúa, ao citar o filósofo mexicano José Vasconcelos (ANZALDÚA, 1997, p. 233)

[8] “Essas diversas possibilidades deixam la mestiza navegando em mares desconhecidos. Percebendo informações e pontos de vista conflitantes, a ela é legado o pântano de suas fronteiras psicológicas. Ela descobre que não pode reter conceitos ou ideias ou rígidos limites. As fronteiras e muros que deveriam conter as ideias indesejáveis em seus limites são hábitos entrincheirados e padrões de comportamento; esses hábitos e padrões são seus inimigos. Rigidez significa morte. Por ao fim ser flexível, a ela é permitido estender vertical e horizontalmente sua psique. La mestiza constantemente muda seus métodos: do pensamento convergente, do raciocínio analítico que tende a usar a racionalidade para ir de encontro a um único objetivo, até o pensamento divergente, caracterizado pelo movimento alheio aos padrões e objetivos e movidos por uma perspectiva mais abrangente, que inclui bem mais do que exclui” (tradução nossa)

[9] “Ela aprende a ser uma índia na cultura mexicana, a ser uma mexicana de um ponto de vista anglófilo” (tradução nossa)

[10] “Nós somos aquelas que saltam ao escuro, nós somos aqueles que sobem nos joelhos dos deuses” (tradução nossa)

[11] A escrita não-criativa consiste numa prática de escritura que se assemelha aos ready-mades de Marcel Duchamp: o autor age apenas como apropriador e manipulador de textos, como quem seleciona ou recorta e borra, assim, os limites entre autoria e assimilação. O autor não é mais o produtor de linguagem, mas o reprodutor que a seleciona e reparte como bem entende. Um exemplo desta tendência é o escritor americano Kenneth Goldsmith, perfilado pelo crítico Leonardo Villa Forte na revista Serrote de agosto de 2016, em texto que pode ser lido por meio do seguinte link: <https://www.revistaserrote.com.br/2016/08/o-autor-como-apropriador-por-leonardo-villa-forte/>

 

 

A serpente e a mulher limpa: os discursos em profusão na poesia de Angélica Freitas 

 

RESUMO: A poeta gaúcha Angélica Freitas (1973) divide opiniões entre críticos, discursos favoráveis e desfavoráveis à sua poética. Mas os aspectos apontados de um lado e de outro parecem sempre identificar a poesia de Freitas em campos identitários que falham por si mesmos: deixam de notar a complexidade estética e a inventividade conceitual de sua obra. Por vezes a necessidade de encaixar a obra na tradição, por vezes a negando justamente por não fazer parte do cânone, a poesia de Angélica Freitas atravessa leituras incólume, todavia. Neste artigo, buscamos evidenciar e refletir sobre aspectos da potencialidade poética de Freitas, que se anuncia mormente no limiar de qualquer partilha identitária e canonizadora, sempre se afastando dos elementos de captura e expandindo sua presença enquanto potência.  

PALAVRAS-CHAVE: Angélica Freitas. Poesia. Efeito de presença. 

 


The snake and the clean woman: the discourses in profusion in the poetry of Angélica Freitas 

 

ABSTRACT: The poet Angélica Freitas (1973) divides opinions between critics, between favorable and unfavorable discourses to her poetics. But the aspects pointed from one side and the other always seem to identify Freitas’s poetry in identity fields that fail by themselves: they fail to notice the aesthetic complexity and conceptual inventiveness of her work. Sometimes the need to fit the work into tradition, sometimes denying it precisely because it is not part of the canon, the poetry of Angelica Freitas goes through unscathed readings, however. In this article, we seek to highlight and reflect on aspects of Freitas® poetic potentiality, which announces itself on the threshold of any identity and canonizing sharing, always moving away from the elements of capture and expanding its presence as a potency. 

KEYWORDS: Angélica Freitas. Poetry. Effect of presence.  

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ALVES, Iasmin Correia; CHACON, Maria Luiza Assunção; BEZERRA, Pedro Lucas de Lima Freire. A serpente e a mulher limpa: os discursos em profusão na poesia de Angélica Freitas. ClimaCom – A Linguagem da Contingência [Online], Campinas, ano 6,  n. 15,  Ago.  2019 . Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/a-serpente-e-a…gelica-freitas/